Uma língua de muitas histórias

A História do Português sob o olhar da ciência

5 de maio é o Dia Mundial da Língua Portuguesa. E nós aproveitamos a ocasião para mostrar o que a Ciência sabe e o que não sabe – e anda querendo saber – sobre a língua materna de pelo menos 200 milhões de Brasileiros… 

Ei, mas espere, pois alguns leitores podem estar se perguntando: “Uhm? Ciência? Não se sabe tudo sobre a língua portuguesa? Mas estudamos na escola e parecia que nos manuais de gramática estava todo o conhecimento sobre a língua!”. Outros, ainda, podem estar desconfiados questionando: “O que a ciência tem pra investigar sobre a língua que usamos? Sabemos tudo sobre ela, ué! Tanto assim que não passamos um dia sequer sem falar algo em português no Brasil”. Pois é, vamos falar um pouco disso nos próximos parágrafos. Vamos tentar mostrar, por meio das pesquisas sobre a História da Língua Portuguesa, a riqueza que é olhar para nossa língua como objeto de pesquisa científica. E conhecer mais sobre ela, você deve saber, é entender mais sobre nós mesmos.

Mas, antes de entrar nessa História, é preciso entender duas coisas que marcam todas as línguas humanas do planeta. Eu disse “todas”. Todas as línguas do planeta são sempre marcadas por “variação” e por “mudança” linguística. Opa! Animaram-se os mais jovens: “Já estudei esse papo de variação linguística na escola, né! Temos variação porque o Brasil é muito grande e cada região se fala de um jeito. Temos variação porque meu avô fala diferente de mim!”. Isso mesmo!

Fenômeno da variação linguística (Reprodução/Blog Parábola)

Porém, o fenômeno da variação linguística é muito maior do que isso! Há variação linguística porque a língua sempre me oferece formas diferentes de dizer a mesma coisa. E isso vai além das diferenças regionais – como o fato de que em alguns lugares se diz “bolacha” e em outros, “biscoito”. Também vai bem mais além do que as diferenças de fala entre jovens e idosos – aquelas que a gente percebe quando vê nosso avô dizendo que o doce ficou “supimpa” no lugar de falar: “O doce ficou bom / show / massa”. Por exemplo, posso dizer “Este é o carro amarelo” ou “Este é o carro que é amarelo”. Ou ainda, posso escolher dizer “Amanhã eu viajarei” ou “Amanhã eu vou viajar”. Pensando que qualquer um de nós pode dizer uma forma ou a outra, percebemos que a variação está no indivíduo também. Diante de formas linguísticas diferentes à nossa disposição, escolhemos uma delas, conforme o contexto, optando sempre pela que nos parece melhor, em cada situação de comunicação. 

“Está bem, professor, entendido! E onde entra a ‘mudança’?” A mudança linguística é fruto da variação. Num dado momento uma das formas de dizer ou escrever algo prevalece sobre as outras formas e se torna preponderante. Pode até substituir completamente a forma concorrente, que desaparece. “Mas os usuários da língua escolhem uma forma linguística e abandonam a outra?”, perguntou-me um curioso. Oras, oras, essa é exatamente a pergunta que alguém que queira estudar a língua do ponto de vista científico deve fazer. Às vezes, uma forma linguística fica associada a um grupo social de maior poder social, de modo que a outra forma fica identificada como uma forma a ser evitada. Passamos, por exemplo, a ter vergonha de usá-la ou de associá-la com um grupo social ao qual não queremos pertencer. Atribuímos valor social às formas linguísticas, de modo que uma forma recebe de nós um valor de prestígio e a outra, de estigma. Esse processo de mudança pode durar muitas e muitas décadas e é sempre preciso investigar mais de perto para entender o que de fato aconteceu. E é aí que entra a Ciência que estuda a língua. No caso, entra a Linguística, que é o ramo científico que investiga como a língua é, ou ainda, como os falantes usam a sua língua, seja na oralidade ou na escrita.

Bem, entendido esses dois pontos, podemos começar a pensar como surgiu a língua que a data do dia 5 de mais enaltece. Aí vem aquele leitor sabido: “Eu sei, eu sei. Veio do Latim. A língua de escritores como Cícero e Virgílio. Eles eram romanos e escreviam e falavam em latim. Quando o Império Romano chegou ao fim, surgiu a Língua de Camões!”… Ei, calma lá! Não foi tão simples e tão rápido assim. Vamos ver com calma o que a Linguística e a História da Língua nos contam sobre isso.

  De fato, os romanos andaram por toda a Península Ibérica – região que cobre hoje o que conhecemos como Portugal e Espanha – durante o seu período de expansão. Isso aconteceu por volta de 218 a.C., como um dos capítulos da chamada Segunda Guerra Púnica. Principalmente, na região mais ao sul da Península, a língua e a cultura dos romanos se espalharam mais facilmente – ao norte, nas terras dos chamados Gallaeci houve alguma resistência. Assim, por um período de quase 600 anos, toda a península permaneceu sobre domínio dos romanos e o Latim passou a preponderar por lá.

Região antigamente conhecida como Península Ibérica (Reprodução/Minuto Ligado)

Mas, nesse tempo todo, o Latim não permaneceu intocável. Lembra-se que toda língua é marcada por variação linguística e passa por mudança? Pois é. Com a língua dos romanos não foi diferente. Nesse tempo todo, muitas mudanças foram ocorrendo no interior do Latim usado na Península Ibérica. Só pra exemplificar – claro não daria tempo de aqui te contar todas as mudanças – o Latim Clássico na oralidade apresentava dez sons vocálicos (de vogais), havendo a distinção entre as “breves” (ditas com a boca mais aberta) e as vogais longas (nas quais os falantes se demoravam um pouco mais na produção do som). Esse sistema foi, aos poucos, sendo alterado para apenas sete vogais abertas e fechadas em um sistema semelhante ao que temos hoje – temos o som “a” (que encontramos em “pata”), o som fechado “ê” (que realizamos em “peixe”), o som aberto “é” (que temos em “fera”), o som “i” (que há em “ilha”), o fechado “ô” que ouvimos em “ovo”, o som aberto “ó” (que falamos em “porta”) e o som “u” (de “uva”). 

Até que… Ah você deve se lembrar de alguma coisa das aulas de História, não?! A civilização romana chegou ao fim, quando se tornaram enfraquecidos do ponto de vista político e bélico, com as invasões dos povos germânicos – que muita gente chamou de “bárbaros”. Pois é, na Península Ibérica foi assim mesmo. Esses povos invadiram a região e deixaram suas marcas linguísticas, a partir do ano de 409 d.C. Assim nos séculos V, VI e VII, vândalos, suevos, alanos e os visigodos permaneceram na península Ibérica, estando em constante luta pelo domínio territorial. 

Claro que esses povos encontraram uma população que já falava esse um Latim profundamente transformado durante todo o período romano. Esse Latim falado e alterado seria conhecido como Latim Vulgar. E a permanência desses povos na região acelerou, por um lado, ainda mais as transformações da língua latina que, pouco a pouco, ajudaria a preparar a formação do Português e do Espanhol, em um processo muito lento. Por outro lado, o contato com esses povos enriqueceu o vocabulário dos falantes da Península Ibérica, de modo que algumas palavras que usamos hoje como “guerra”, “trégua”, “ganso”, “espeto” e “estaca” têm origem na língua desses povos.

Mas não parou por aí. Não foi nesse ponto que a língua portuguesa nasceu. Em 711 d.C, portanto, no século VIII, os árabes e berberes do Maghreb, de religião mulçumana, invadem também toda a região. Chamados de “mouros”, esses povos permanecerão na Península, de modo mais ou menos tranquilo, até o século XI. Isso mesmo, por quatro séculos! A partir daí passam a enfrentar a guerra dos povos cristãos que haviam permanecido restritos ao norte, num longo conflito que, para os portugueses, duraria até o século XIII e, para os espanhóis, bem mais que isso. Desse período de domínio mulçumano, tomamos por empréstimo muitas palavras do árabe usadas hoje em Português. Quando o leitor encontrar uma palavra na língua mais falada no Brasil iniciada por “al” e até por “a” desconfie; pode ser uma palavra de origem lá das Arábias! Assim, a palavra “alface”, “alfaiate”, “azeite”, “arroz” entraram para a língua dos falantes da Península Ibérica por causa do contato com esses povos. “E, por que começam com “al”?”, pergunta-me o leitor atento. Por que “al” é o artigo do árabe, quando importamos essas palavras trouxemos não só o substantivo, mas o artigo junto. Engraçado, não?! Mas foi assim.

Como resultado dessas invasões de povos germânicos e mulçumanos as transformações no Latim seguiram a todo vapor. Por exemplo, é, provavelmente nesse período, tenha se formado o grupo consonantal (de consoantes) “cl”. Assim, se no latim clássico havia “ocŭlum”, no Latim Vulgar temos em “oc’lu-” (resultante dao apagamento do “u” depois do “c” e antes do “l”). Mais tarde, essa palavra se transformaria em “olho”, vocábulo tão familiar aos falantes de Português hoje. Mas e “óculos”, professor? Simples, “óculos” veio do Latim, mas seu emprego na Língua Portuguesa é bem mais recente, quando inventaram essa maravilha que permite a astigmáticos como eu enxergar alguma coisa!

Escrita em latim (Reprodução/Superprof)

“Bem e o português? Surgiu, então, com esses cristãos que expulsaram os mouros?”, pergunta o ansioso leitor. Mais ou menos. Não se pode ir tão rápido. Quando esses povos cristãos oriundos da região mais ao norte do que é hoje Portugal unificaram seus reinos e passaram a realizar a chamada guerra da “Reconquista” – para retirar das mãos dos mulçumanos o domínio da maior parte das terras da Península Ibérica, – falavam o que chamamos de Galego-Português. Você talvez já tenha visto textos nessa língua. Se estudou o Trovadorismo com suas cantigas de amigo, de amor e de escárnio, você teve contato com esse antepassado do nosso Português. Lembra-se, por exemplo, desse verso, escrito por Dom Dinis?

– Ai flores, ai flores do verde pino,

se sabedes novas do meu amigo?

Ai Deus, e u é?

Nesse verso, percebemos que há uma língua mais próxima do bom e velho Português, não é? Mas temos algumas formas estranhas, não? Veja “pino”, “sabedes” e “u”. Bem, talvez imagine que pino é “pinho”, numa referência ao pinheiro. O “sabedes” virou a forma “sabeis” (de “vós sabeis”) e este “u”, pasme, tinha o mesmo significado de “onde”! Sim, houve um tempo, em Galego-Português, que o interrogativo “onde” não era o mais usado; este só ganhou a guerra com “u” bem depois, em mais um caso de variação que levou à mudança linguística. E o verbo “é”? Não te parece estranho o uso também? Que lê com atenção percebe que falta alguma coisa depois dele, não? Não, não falta. O verbo “é” tinha o mesmo significado de “estar” nesse período, de modo que o último verso poderia ser traduzido para o Português atual por “Aí Deus, e onde está?”. Ah, e claro, “amigo” – se você estudou trovadorismo na escola, é, na verdade, um amante; não tem o sentido que conhecemos hoje.

Mas aí novamente atento um leitor pergunta: “Bom, mas se a língua se chamava Galego-Português era também a língua da Galícia, cento?” Isso mesmo! Galego e Português eram uma mesma língua. Somente mais tarde, elas se separaram.

Na realidade, o processo contou com colaboração das variações linguísticas e mudanças ocorridas no interior da língua levada para o sul no processo de “Reconquista”.  Como os reis portugueses sempre mudavam de residência rumo ao sul, fixando-se por fim em Lisboa, capital portuguesa até hoje, a língua do grupo social mais poderoso daquele reino ia aos poucos se afastando – geográfica e linguisticamente – cada vez mais da língua falada na Galícia. De modo que aos poucos, o Português foi se separando do Galego.

Nessa mudança do Galego-Português para o Português, muita coisa se alterou. Só para ilustrar, a distinção que temos hoje entre “cem” (com “c”) e “sem” (com “s”) mostra bem a diferença de uma língua para outra. Em Galego-português, a primeira palavra era dita “tchem” e a segunda “sem”. Na formação do Português, esse som que chamamos de palatalizado – porque a língua bate no palato, ou seja, na ponta do céu da boca – desapareceu e foi transformado no som “s”. Eram dois sons diferentes e, por isso, eram escritas de duas formas diferentes!

De qualquer modo, foi nesse processo de intensas variações linguísticas que resultaram em mudanças que finalmente fizeram o Português surgir. Difícil saber exatamente quando. Há muitas propostas de periodização do Português. Algumas sugerem que haveria um Português pré-histórico ou pré-literário antes do ano de 900, mas isso é bem polêmico. O mais correto talvez seja considerar que por volta de 1100/1200 até aproximadamente o Século XV tenha existido o tal Galego-Português, também chamado de português antigo ou arcaico por alguns pesquisadores. Depois disso, o Português teria se separado do Galego, mas ainda passaria por muitas transformações até chegar ao Português Moderno que conhecemos hoje.

Você vai descobrir mais sobre isso no texto “História do Português: as curiosidades ao longo do tempo”, mas antes, conheça outras curiosidades da origem da Língua Portuguesa no vídeo abaixo:

Sobre o autor do texto:

Hélcius Batista Pereira é Doutor e Mestre em Filologia e Língua Portuguesa pela USP, docente e pesquisador do Departamento de Língua Portuguesa e do Programa de Pós-graduação em Letras da UEM, coordenador do Mastigando Letras (projeto de extensão com objetivo de popularização dos conhecimentos e pesquisas da área de Letras).

O conteúdo desta página foi produzido por

Texto: Hélcius Batista Pereira
Revisão: Ana Paula Machado Velho e Noth Camarão
Arte: Murilo Mokwa
Edição de vídeo: Ingrid Lívero
Supervisão de Arte: Tiago Franklin Lucena
Edição Digital: Gutembergue Junior


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