Foi olhando para as estrelas que Johannes Kepler, astrônomo e matemático alemão, causou uma verdadeira revolução científica no século XVII. Kepler foi o responsável por formular uma sólida base para a mecânica celeste, fornecendo bases para importantes nomes que vieram depois, como Isaac Newton.
Naquela época, assim como hoje, a curiosidade era um combustível que agrupava em um mesmo espaço artistas, cientistas e engenheiros. Os laboratórios de pesquisa pareciam mais ateliês de arte, corpos estavam sendo dissecados e observados por anatomistas, que também eram artistas – assim que um músculo era identificado, suas fibras eram observadas e reproduzidas em quadros com realismo assustador – a mesma imagem era usada por cientistas para o ensino.
A astronomia e o pensamento mítico andavam de mãos dadas, as receitas de remédios para curas criadas por médicos não se diferenciam muito das poções mágicas descritas na literatura. Nesse momento, a arte e a ciência, que sempre guardam muitos pontos em comum, andavam mais juntas.
Kepler teve seus insights após ter sido tocado poeticamente pela experiência de ver um cometa ainda criança. Eventos como esses e eclipses fomentavam a imaginação na época, que era desafiada pela constante relação entre ciência e religião. Numa de suas principais contribuições, ele defendeu o “heliocentrismo”, uma visão teórica e teológica de que o sol era o centro do universo e uma força motriz para nossa espécie. Sua sensibilidade extrapolou essas contribuições científicas, o mundo de Kepler efervencia com uma nova atitude que pairava na Europa naquela época.
O chamado renascimento trazia como características uma profunda aproximação d arte com as ciências e com as pesquisas no campo da matemática, com o corpo, com o Belo e com a engenharia. Kepler, segundo o autor Fernand Hallyn no livro “The Poetic Structure of the World: Exploratory Essays in Philosophical Computer Modeling: Copernicus and Kepler” só formulou suas teorias porque aplicou a elas o pensamento artístico da época, foi pelo senso estético da harmonia e visão de mundo dado pela arte que ele conseguiu aplicar na astronomia. Assim como o Grande Cometa de 1577, outros eventos sacudiram o imaginário da população. A invasão das Américas alimentava a imaginação do exótico, era muita coisa para aprender em pouco tempo: novos animais, novas plantas, novas topografias e paisagens e “novas pessoas”. O choque foi instantâneo, o ímpeto pela descoberta do novo também representou um medo do outro desconhecido. Artistas foram convidados para documentar e apresentar todo esse novo universo para o mundo. As expedições no novo mundo continham artistas como verdadeiros guias para o desconhecido.
Séculos depois de Kepler, artistas e cientistas continuam a se inspirar mutuamente. Grupos como o Symbiotica experimentam criação artística com material biológico. Sabemos de grupos que fazem esculturas com “engenharia de tecido” – controlando o nascimento de células-tronco. É esse conhecimento da matéria que permitirá a aplicação na criação de novos órgãos para serem transplantados. Outros artistas trabalham com dados de aquecimento global, criam sensores que monitoram o crescimento de árvores e as transformam em sons.
Muitos desses exemplos foram descritos no trabalho do autor Stephen Wilson, num livro chamado Art + Science Now. Também curioso com as possibilidades da ciência e tecnologia, artistas visitaram laboratórios nas universidades de engenharia, de sismologia, de clima e de computação. Um deles, o brasileiro Waldemar Cordeiro, bateu a porta do físico Giorgio Moscati, na Universidade de São Paulo (USP), para fazer com que o computador criasse imagens. Era um pedido estranho, pois o computador era usado para realizar cálculos complexos. O pedido de Cordeiro e tantas outras colaborações que vieram a seguir contribuíram para o surgimento da interface gráfica dos computadores que usamos tão facilmente hoje. Muitos dos softwares de computação gráfica que nossos artistas usam devem-se a essa associação entre artistas e cientistas. Artistas como Diana Domingues continuam com essa tradição de alinhar Arte, ciência e tecnologia.
Artistas de casa
No Conexão Ciência, dois artistas se juntaram à equipe com a importante tarefa de criar peças gráficas para as matérias de outros pesquisadores. Mais do que criar imagens que funcionam como suportes e acessórias ao texto, a decisão deles foi interpretar o tema e criar peças autônomas que dialogassem com o conteúdo da matéria. Assim John Zegobia e Murilo Mokwa elevam as criações com suas visões poéticas e sensíveis do mundo. Em um dos trabalhos que deveria reproduzir um mapa da América do Sul, John “inverteu” o mapa numa reflexão política e decolonial, assim, além de funcionar como infográfico, a imagem ganhou um tom político, caracterizado por uma simples escolha estética, que prioriza uma perspectiva em meio a tantas outras possíveis.
Murilo, por outro lado, se inspirou no lindo relato de cartas que eram trocadas entre os japoneses, que chegavam imigrados ao Brasil, e criou uma arte com simbolismos da relação entre Japão e o nosso país. Isso, para ilustrar uma pesquisa sobre um software que traduz manuscritos japoneses em textos em português. O chão esverdeado e as pontes que unem o Brasil, que está ao fundo, e o Japão, que se encontra a frente na ilustração, tem um efeito gestáltico (da relação entre forma e fundo) que faz se assemelhar a uma mão, referenciando as escritas à mão. O aspecto de selo também foi desenvolvido para trazer essa conexão com as cartas. Ao lado direito se encontram caracteres em Kanji, que são silabários japoneses, que formam a palavra Brasil.
As ilustrações de capa se desenvolvem de formas diferentes a cada matéria, com uma criação original para cada uma delas. Em certos momentos, busca-se representar de forma mais direta e cristalina o assunto, facilitando ao leitor compreender o que lhe aguarda. Em outros momentos, a arte se apresenta de um modo mais subjetivo, proporcionando de forma mais intensa a imaginação do leitor em torno da arte e do que se trata a reportagem. Esses movimentos são pensados para instigar o leitor e criar interesse pelo conteúdo em que irá mergulhar. A arte busca se conectar com o imaginário do leitor, fazer com que ele leia a matéria mas que também, depois de lida, volte a imagem e tente decodificá-la.
Como um exemplo dessa tentativa de aproximar informação científica e arte, temos a matéria sobre a produção de cerveja, tema que pode ser bem complexo para a maioria das pessoas, pois entender de questões químicas e processos mecânicos de transformação não é tão fácil. Para isso, foi desenvolvido um infográfico das fases de produção, ilustrando de forma simples e compreensível como funciona, quais as etapas, seus nomes e os equipamentos principais utilizados para o desenvolvimento dessa bebida tão apreciada em nosso país.
As decisões estéticas e poéticas tomadas em artes de capa e infográficos do Conexão Ciência também são influenciados por um senso de responsabilidade de repovoamento imagético e imaginativo das redes e seus conteúdos. Nelas, os artistas buscam a criação com imagens que tragam, mesmo que de forma sutil, histórias reais e possibilidades de existência, que se amparam em verdades que, paralelas, pouco a pouco são admitidas na academia.
Na matéria “Educ(AÇÃO) Social” utiliza-se como capa uma representação da Rua Apolo, no Jardim Universal, em Sarandi – PR, determinando uma produção dos saberes locais e fixando o olhar sobre a periferia de uma região metropolitana marcada por marginalizações espaciais e culturais, dentre tantos outros recortes. A ciência, além de apontar, por exemplo, para as debilidades da máquina pública de um Estado, em sua versatilidade, metodologias e especificidades de conhecimentos, adiciona ao espaço geográfico ocupado atualmente as informações de outros tempos. Assim como os artistas que acompanhavam as exposições científicas no Brasil-Colônia, os de hoje imprimem sua visão de mundo na arte. Com o C² isso não seria diferente.
Pode-se compreender, então, que todo artista é, por si só, um pesquisador, inserido em um tempo e espaço que o atravessa. A arte, assim como a ciência, é regida pela historicidade de sua época, possui ciclos, retrações, refrações e reflexões, inova, sofre censuras, e se apresenta como essencial para a discussão do poder e das narrativas que este possibilita, e permite perceber e esconder quais imagens são vistas ou escondidas.
A ciência, enquanto instituição não imune às redes de operação do poder, e a arte, enquanto organismo distribuidor das narrativas, debates e produções culturais, se relacionam de maneira a conciliar e expor, por múltiplos meios, as reações dos embates de classe que marcam a história da humanidade. A ciência se apresenta enquanto medidor de verdade das mais diversas epistemes, arte e ciência são frutos do seu contexto.
Na capa da matéria “Pedras constroem futuro da agroecologia”, percebe-se a decisão estética de adicionar os elementos químicos que formam o próprio chão que se pisa, dando o tom do pigmento que colore a sola do pé da população norte-paranaense. O homem representado é um agricultor, figura que contrasta com o grande produtor ligado ao agronegócio. Um homem com o pé-vermelho ligado diretamente à terra.
Esse tipo de discurso da arte extravasa para outras imagens, como nas matérias sobre “O Lago do Ingá: o queridinho do maior parque da cidade”, “Fazer bem para o planeta é investir” e “Antropoceno: o poder destrutivo da espécie humana”. É viável, pela leitura dos quadros de infografia, a admissão da influência das atividades humanas nos meios naturais, a ampliação da noção das espécies com as quais dividimos o planeta e o estado do planeta que se está deixando para as pessoas.
Utilizar a arte ainda é um desafio, assim como a ciência, pois é composta por pessoas, multiplicidade de humanidades, interesses. No C² os artistas não estão alheios a isso, assim como os cientistas que interpretam e explicam o mundo nós também fornecemos formas de ler e interpretar as matérias e os temas tratados por elas.
Glossário
Infográfico: Textos visuais explicativos e informativos associados a elementos não verbais, como imagens, sons, gráficos, hiperlinks.
O conteúdo desta página foi produzido por
Texto: Rafael Donadio
Edição de áudio: Rafael Donadio
Supervisão: Ana Paula Machado Velho
Arte: John Zegobia
Supervisão de Arte: Thiago Franklin Lucena
Edição Digital: Gutembergue Junior