Ilustração de Murilo Mokwa sobre espécies de peixes

Fazer bem para o planeta é investir

Programa de pesquisa mostra que a “conta” por tudo que o ambiente nos oferece deve ser “paga” com o monitoramento e a preservação dos ecossistemas

João Pedro Mariano dos Santos é um produtor que entrega a salada do almoço e do jantar para dezenas de pessoas da região onde mora. Ele trabalha com a mulher, Tainara de Jesus Santos. Ambos sabem bem que se beneficiam do que a natureza disponibiliza para a área de cultivo que pertence a eles: sementes, terra, micronutrientes, água, enfim, os elementos que permitem a eles cultivarem a alface, o espinafre, o tomate e outros vegetais. Esses “bens” naturais vêm de onde? Da natureza, certo? 

Pensemos assim: se não chove, a área de produção do João e da Tainara não vai contar com a umidade necessária à nutrição e crescimento das plantas. Boa parte das precipitações de chuva que acontecem no Paraná, onde o produtor vive, e em tantas outras regiões do país, vem de longe. A umidade gerada pela floresta que marca o ecossistema amazônico, por exemplo, é “empurrada” por correntes de vento que fazem com que gotas de chuva caiam nas plantações paranaenses como a horta do João. Ele sabe disso porque é aluno do curso de Agronomia da Universidade Estadual de Maringá (UEM).

Essa água produzida pela natureza também mantém o volume dos rios, permitindo a vida de inúmeras espécies que vão alimentar comunidades ribeirinhas e até você. Esses rios ainda possuem usinas de energia que movimentam as empresas, o comércio, nossas casas. 

Ufa!! Quanta coisa o ambiente nos oferece! Estimativas do Banco Mundial apontam que, se a gente transformasse em uma quantia a soma de tudo aquilo que utilizamos da natureza, chegaríamos a algo entre 125 e 145 trilhões de dólares por ano. Esses recursos naturais que nos são “entregues de graça” são resultado do que é chamado de serviços ecossistêmicos e justificam a grande preocupação do mundo, como um todo, em manter o equilíbrio e o bom funcionamento dos diferentes ecossistemas.

Pesquisadores e ecologistas de todo o planeta vêm divulgando a importância de ficarmos atentos para manter os biomas saudáveis e equilibrados. Ainda chamam atenção para o fato de que as pesquisas de monitoramento da qualidade e manutenção dos ecossistemas precisam ser diversificadas e atuarem em longo prazo. 

Quem explica esse detalhe importante é Claudia Bonecker, bióloga do Núcleo de Pesquisa em Limnologia, Ictiologia e Aquicultura (Nupélia), também da UEM. Ela é a coordenadora de um programa financiado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), que se chama Pesquisa Ecológica de Longa Duração. Todo mundo conhece por Peld. 

Claudia conta que existem alguns processos ambientais que influenciam a natureza, que não ocorrem em um curto período de tempo, mas em longas escalas. Como exemplo, ela citou os eventos climáticos chamados de El Niño e La Niña, que provocam períodos de muita chuva e de seca intensa, respectivamente. “Nós só podemos dizer qual a resposta do ecossistema a esses eventos, que não ocorrem todo ano, se tivermos uma pesquisa de longa duração, porque esses fenômenos são recorrentes ao longo do tempo”. 

História do Peld

O Peld é um programa mais antigo do que quando começou, de fato, no Brasil. Faz parte de uma rede internacional chamada de Long Term Ecological Research (LTER). Por aqui, o programa foi implementado, em 1999, por meio de uma iniciativa do professor José Galizia Tundisi, um limnólogo de renome nacional e internacional, que, atualmente, é diretor do Instituto Internacional de Ecologia. À época, ele era presidente do CNPq. 

Conversando com outros pesquisadores, Tundisi, que trabalhava com reservatórios no estado de São Paulo, pensou em como incluir o olhar para todo o ecossistema nestas investigações. A proposta era perceber as interações entre presa, predador, competição tanto terrestre como aquática, enfim, todas as relações no ambiente, que fazem parte do conhecimento do ecossistema. O professor viabilizou a primeira chamada oficial para o financiamento dessas pesquisas ecológicas longas. Em princípio, foram estabelecidos cinco locais, chamados de sítios, no Brasil. 

O Nupélia estava entre os primeiros projetos aprovados, em 1999, e começou os trabalhos do Peld, em 2000. O sítio de responsabilidade da UEM é o de número 6, chamado Planície de Inundação do Alto do Rio Paraná (PIAP). O primeiro coordenador foi o professor Angelo Agostinho, do Nupélia.

🎧 Conheça a história do Nupélia e do Programa de Pós-Graduação em Ecologia de Ambientes Aquáticos Continentais (PEA), contada pelo primeiro coordenador do Peld e um dos criadores do Núcleo, Ângelo Antônio Agostinho

O Peld da UEM, segundo Claudia Bonecker, tem como foco a água. Os pesquisadores estão distribuídos em equipes para acompanhar a resposta da qualidade da água e das comunidades aquáticas da Bacia Alagável do Alto Rio Paraná, responsável por diferentes serviços ecossistêmicos disponibilizados à população dos estados do Paraná e do Mato Grosso do Sul. Este é um trecho do rio que não tem reservatórios. 

É importante marcar o papel das diferentes espécies neste ecossistema. Todas elas contribuem para os serviços ecossistêmicos. Por isso, os pesquisadores do Peld possuem equipes que trabalham no monitoramento não só das comunidades de peixes, dos micronutrientes das águas, mas de todas as espécies presentes na planície.

Em outras palavras, os pesquisadores monitoram a vazão do rio, que vai influenciar a qualidade da água, determinando, por exemplo: a coloração, o odor e o sabor; a quantidade de peixes disponíveis para alimentação e pesca; o número de plantas aquáticas, que podem atrapalhar a navegação e a natação das pessoas. 

“Nos preocupamos, também, no monitoramento da chegada de espécies invasoras, que desequilibram o ambiente aquático e analisamos, ainda, qual a relação dos eventos climáticos, especialmente, do El Niño e da La Niña, sobre a região, visando à manutenção e à proteção da biodiversidade”, explicou a coordenadora do Peld do Nupélia.

Segundo a bióloga, o ecossistema como um todo tem que ter água na hora certa. Na época do verão, por exemplo, a vazão precisa estar adequada, porque é quando a maioria das espécies de peixe se reproduz. Muitas delas necessitam subir o rio, esse esforço físico é fundamental para desovar. Por outro lado, os dias mais secos levam à escassez de água nas lagoas. Esses ambientes são essenciais para o crescimento das larvas e de peixes jovens. “Um desequilíbrio pode prejudicar o desenvolvimento do estoque pesqueiro, serviço ecossistêmico importante nas áreas de planície de inundação, que sustenta as populações ribeirinhas”, explica Bonecker.

Claudia Bonecker

Os cientistas da UEM têm foco, ainda, em problemas causados pelo homem. Alguns deles são ocasionados pela construção de reservatórios acima da planície alagável. Essa barreira artificial, algumas vezes, segura o que vem sendo transportado pelo rio, como os sedimentos que contém uma grande quantidade de nutrientes e são importantes para produção de alimento para as diferentes espécies do ecossistema. Além disso, a redução do sedimento abaixo dos reservatórios pode favorecer o desenvolvimento de plantas invasoras e a competição das espécies vegetais pode reduzir muito as comunidades de animais. 

“Aqueles peixes que estão acostumados a se alimentar de organismos que vivem próximos à vegetação nativa, por exemplo, vão ter dificuldade de encontrar seu alimento se ela diminuir em uma determinada região. Isso reforça o fato de que cada espécie tem seu papel no ecossistema, inclusive, as plantas. Outro exemplo: há espécies de caramujo que desovam em determinadas plantas e se elas não estiverem ali, por conta da competição com a invasora, onde o caramujo vai desovar? Tem toda uma adaptação, uma coevolução entre o bicho e a planta, igual abelha e flor”, explica a bióloga. 

Há um estudo do Peld que demonstra bem a importância da diversidade e a interação entre espécies. O foco são as comunidades de insetos, que vêm sendo monitoradas pelos pesquisadores. Quem explica essa investigação, que, aliás, tem tudo a ver com a discussão sobre serviços ecossistêmicos, é o professor do Programa de Pós-Graduação em Ecologia de Ambientes Aquáticos Continentais (PEA), da UEM, Roger Mormul. Ouça!

🎧 Roger Mormul

Sem equilíbrio menos serviços

Retomando: um ecossistema equilibrado é aquele que oferece os serviços ecossistêmicos que a comunidade precisa. Não só as comunidades de animais, vegetais e de microorganismos são beneficiados, mas os seres humanos, também. Ou seja, garantir a reprodução de peixes, a produção pesqueira em um ambiente aquático é proporcionar a oferta de um serviço da natureza ao homem.

O Nupélia, então, tem como grande preocupação apontar mecanismos ecológicos que possam manter água circulando dentro do ecossistema da planície do Alto Rio Paraná, monitorando os períodos de enchente, cheia e seca, porque toda a dinâmica, até da vegetação, depende dessa oscilação.

“Nesse momento [junho de 2021], sabemos que vamos ter problemas com barragens. Está faltando chuva e, daqui a pouco, as concessionárias vão começar a segurar a água para produzir energia, mantendo o nível dos reservatórios. E isso vai reduzir a quantidade de água para baixo destas áreas de produção. Isso significa faltar água no sistema da planície, o que vai atrapalhar o equilíbrio de toda a área que monitoramos”, alerta Claudia Bonecker.

De acordo com a bióloga, o grupo já viu a resposta das comunidades em períodos climáticos de seca extrema. Ela contou que houve uma época em que os peixes que chegaram às lagoas para se desenvolver ficaram por lá muito tempo, mais do que deviam, por causa de um período extenso de pouca água. Quando as chuvas voltaram, os pesquisadores verificaram que havia peixes que não deviam estar naquele ambiente, porque muitos adultos em um ambiente represado provoca a competição por alimento, o que pode comprometer o crescimento de novas gerações de diversas espécies. 

Parque

Os estudos do Peld ajudaram a delimitar a área do Parque Estadual das Várzeas do Rio Ivinhema, onde um grande número de espécies de peixes se reproduzem. O Rio Paraná divide São Paulo, Paraná e Mato Grosso do Sul. Quando foi criado o reservatório de Porto Primavera, uma grande área foi alagada para viabilizar a barragem de produção de energia. A maior parte no território do Mato Grosso do Sul. A concessionária do reservatório teve que indenizar o Estado pelo alagamento. Para isso, criou o Parque.

Segundo Claudia Bonecker, a pesca amadora e profissional é proibida dentro da reserva, o que muito contribuiu para o aumento da quantidade de peixes na região, e mais: isso vem permitindo que algumas espécies se desloquem para o rio Paraná, incrementando a diversidade neste outro ambiente. Resultados muito positivos.

“Percebemos que o número e a densidade de peixes estão aumentando na área preservada, o que levou a estudarmos se isso também vem acontecendo com o alimento desses peixes, como as algas, zooplâncton e macroinvertebrados. A resposta foi positiva. Percebemos que esses recursos também estão aumentando nessa área. Essa mudança ressalta a importância de se conservar não só o Ivinhema, mas o rio Paraná, que, atualmente, tem suas águas e lagoas marginais, que servem de berçários para as larvas e peixes jovens, comprometidas em volume e qualidade por causa das barragens”, alerta a bióloga. 

Quando se fala em serviços ecossistêmicos, no entanto, é preciso lembrar que uma área inundada não é responsável só pela produção de alimentos. Água de qualidade e na quantidade adequada também viabiliza o abastecimento das cidades e das vilas da região, áreas de pesca recreativa e ambientes de lazer como as prainhas de rio.

Os dados levantados pelo Peld ajudam a comprovar que o cuidado com as comunidades e com o ambiente aquáticos muda a perspectiva econômica das regiões ribeirinhas. “Voltando a nossa discussão, isso garante o provimento dos serviços ecossistêmicos. As pessoas precisam saber desses dados. Por isso, além de atuarmos no ambiente, promovemos eventos nas pequenas cidades do entorno da nossa área de pesquisa, para levar o que a gente chama de educação ambiental”, destaca Bonecker. 

Conheça as ações de educação ambiental e divulgação científica desenvolvidas pela equipe do Nupélia com o apoio dos mestrandos e doutorandos do PEA

O Peld, então, vem funcionando como um agente de monitoramento e gerador de informação científica, contribuindo para garantir a oferta de todos os benefícios que a natureza pode prover para a sociedade sem que a gente precise retribuir a ela “financeiramente”. No entanto, temos uma responsabilidade: manter o ambiente conservado, preservado para que o processo funcione adequadamente. Disso depende uma relação harmoniosa de todas as comunidades que compõem os ecossistemas. 

O casal de produtores João e Tainara, que abastece a mesa de muita gente, inclusive, a família dos agricultores que cultivam a terra junto com ele, reconhece a importância desta interação. Por isso, criaram uma relação harmônica com a terra.

“Utilizamos a agroecologia e a agricultura primitiva para nortear nossos trabalhos. Fazemos práticas de recuperação e conservação dos nossos solos, produzimos de forma orgânica; iniciamos processos de compostagem para transformar nossos resíduos orgânicos em adubos; e vivemos seguindo e respeitando nossa cultura e a cultura da comunidade que estamos inseridos. Para nós, esse é o modelo de negócios que nos permite viver em equilíbrio, em conexão saudável com o ambiente”, comemorou o futuro agrônomo, João dos Santos.

Conheça mais de perto o Nupélia, que executa o Piap/Peld

O conteúdo desta página foi produzido por

Texto: Ana Paula Machado Velho
Degravação da entrevista: Maria Eduarda de Souza Oliveira, Milena Massako Ito e Thamiris Rayane Shimano Saito
Edição de áudio: Ana Paula Machado Velho
Edição de vídeo: Thamiris Rayane Shimano Saito
Ilustrações: John Zegobia
Fotos: Arquivo Pessoal

A pesquisa que mencionamos contribui para os seguintes ODS:


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