Eniuce Menezes: pesquisadora com uma “história de antigamente” e vida ligada à tecnologia

“O que me deixa mais forte é mesmo o trabalho. Não consigo me ver sem pesquisar, sem estar envolvida”

Paranaense nascida em Campo Mourão, Eniuce Menezes se mudou com os pais, com apenas dois anos de vida, para um sítio próximo a Presidente Prudente, em São Paulo, onde viveu toda a infância e adolescência. Uma vida simples, que ela descreve como uma “história de antigamente, de uma vivência no sítio, em uma cidade muito pequena”.

Foi na única escola pública dessa cidadezinha, ainda mais próxima do sítio, que ela estudou durante a Educação Infantil e o Ensino Fundamental. Nessa história de antigamente, os pais da pequena Eniuce se esforçaram de todas as maneiras possíveis para que ela e a irmã, quatro anos mais nova, estudassem. O pai as levava para a escola de bicicleta, charrete ou carrocinha. Nos dias de chuva, “tinha que colocar sacolinha para não melar todo o tênis de barro”.

No último ano do Ensino Fundamental, Eniuce foi aprovada para cursar o magistério em uma escola de Presidente Prudente, com ensino integral. A aprovação lhe rendeu uma bolsa de estudo, um salário mínimo da época, mas estudar ficou difícil, por incrível que pareça. A cidade era mais distante que a anterior, portanto, ela precisava pegar ônibus ou, quando atrasava, conseguir carona no trevo próximo ao sítio, em uma época em que uma menina de 13/14 anos ainda podia pegar carona com segurança, é claro. Não é nem preciso dizer o quanto ela gostava e se dedicava aos estudos.

Antes de terminar o magistério, Eniuce já mirava a faculdade. O fato de nunca ter tido um computador em casa não mudou em nada o interesse que ela tinha por Ciência da Computação. Era fascinada, desde pequena, pela área, pelos equipamentos e por tecnologia. Chegava até a desmontar os rádios da família. Mas havia um grande problema: a única faculdade pública próxima, a Universidade Estadual Paulista (Unesp), em Presidente Prudente, não tinha, na época, um curso de Ciência da Computação.

Eniuce Menezes (ASC/UEM)

Então, a graduação escolhida acabou sendo Matemática, que ela considerava a mais próxima da área que desejava. O magistério não a preparou adequadamente para o vestibular, havia um déficit em algumas disciplinas, por causa do ensino mais focado na pedagogia e, também, por haver muita troca de professores durante o ano letivo. Mas isso não impediu que Eniuce tirasse a melhor nota de todo o vestibular. 

Durante o primeiro ano da faculdade, ela ainda cursava o último ano do magistério, o que fez com que ela ficasse um ano todo estudando de manhã, à tarde e à noite. E, mais uma vez, os pais de Eniuce estavam ali, esforçando-se para que ela tivesse a oportunidade de estudar. “Eles iam me buscar à noite. Meu pai chegava a dormir no carro esperando por mim, porque ele levantava muito cedo para tirar leite, às 4 da manhã”, relata a filha mais velha do casal. E completa: “o que eu sou hoje é graças ao incentivo e esforço deles”.

Logo cedo, ela se envolveu em monitorias e pesquisas. Com uma bolsa de iniciação científica, conseguiu fazer bastante atividades voltadas à computação. Logo após a formatura, começou o mestrado, que, assim como na escolha da graduação, foi decidido pela área mais próxima da que almejava, de novo na Unesp. Mas, dessa vez, o casamento no último ano da faculdade foi o motivo. Para ela, foi mais conveniente ficar pela região naquele momento.

E por lá ficou, cursando o mestrado em Ciências Cartográficas. O artigo apresentado à ela, por um possível orientador, foi o que deu o Norte a Eniuce. “Falava de sinais de satélite, de reflexão de sinais e tinha umas coisas matemáticas que eu não tinha aprendido ainda, mas era bem relacionado à matemática pura, associada a uma matemática mais pesada. Eu gostei e me apaixonei por aquela coisa que eu não sabia nem do que se tratava, mas tinha ligação com sinal de satélite, computação, matemática, estatística. Falei, é isso aqui mesmo”, explica ela.

Em 2004, assim que defendeu a dissertação, a agora mestre Eniuce entrou no doutorado, com o mesmo tema e, também, na Unesp. Sua filha mais velha, Giovanna, nasceu no mesmo ano, mas, apesar do desgaste de cuidar de uma criança pequena, tudo correu bem. Na Universidade Estadual Paulista, ela podia trabalhar no doutorado e sair para amamentar a filha ali pertinho, na creche da própria instituição.

O mestrado e o doutorado deram a oportunidade para Eniuce viajar para o exterior mais de uma vez. É por esse e tantos outros motivos, que a levaram a se apaixonar por áreas desconhecidas, que ela se orgulha tão intensamente da trajetória que trilhou até hoje. Mas engana-se quem pensou que a vida de uma mulher cientista foi fácil. A gravidez e a maternidade, por exemplo, sempre trazem muito mais responsabilidades para a mulher, em relação ao homem. Eniuce ficou grávida tanto no mestrado quanto no doutorado, de Giovanna e Vitor, o filho do meio. 

“Eu vejo que as mulheres são muito guerreiras para conseguirem ser produtivas, publicar artigos e atingirem diversas metas. A comparação é sempre injusta, porque além da mulher ter que estudar e fazer a pesquisa, ela também precisa cuidar dos filhos e da casa. Para os homens, acaba sendo mais tranquilo, talvez, porque eles precisem se preocupar apenas com o trabalho. Não digo que eles não ligam [para os cuidados com os filhos e com a casa], pode até ser que, no geral, eles ajudem, mas é isso, só ajudam”, relata Eniuce, mãe de três filhos, Gustavo (10), Vitor (13) e Giovanna (17). E brinca: “pelo menos, em termos de filho, eu fui bastante produtiva”.

Universidade Estadual de Maringá – UEM

A vontade dessa paranaense de morar em Maringá era tão grande que, ao prestar concurso para trabalhar na UEM, ainda durante o mestrado, escolheu, mais uma vez, uma área que ainda pouco conhecia: Estatística. O motivo? O Departamento de Matemática era em Cidade Gaúcha, para onde ela não queria ir. Então, em agosto de 2009, ela retornou ao estado natal. Mas antes, no período entre o término do doutorado e a chamada para ocupar o cargo na universidade, Eniuce trabalhou como bolsista especialista visitante, durante seis meses, no Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), com lançamento de foguete, modelagem e simulação de satélite e de sinais.

Ao assumir o cargo dentro da UEM, Eniuce carregava o terceiro filho no colo. Gustavo, o mais novo, tinha apenas 6 meses. A creche da universidade foi novamente muito importante, porque ela conseguia trabalhar e cuidar do filho. Ela, então, começou a trilhar um novo caminho na carreira profissional, mas sem deixar a Geociência de lado, é claro. Ali, no Departamento de Estatística (DES), ela começou a trabalhar com a área da saúde, então, além das disciplinas do DES, Eniuce assumiu as aulas no Programa de Pós-Graduação em Ciências da Saúde, tanto no mestrado como no doutorado. 

Ela também foi vice-coordenadora adjunta da graduação. Entrou assim que chegou à UEM e ficou por oito anos, antes de se tornar coordenadora, por mais dois anos. Em 2019, Eniuce pediu para deixar o cargo para iniciar um pós-doutorado, na Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisino), no Vizlab | X-Reality and GeoInformatics Lab, em projeto financiado pela Petrobrás. Em qual área? Computação Aplicada! Aquela pela qual ficou fascinada, que conheceu ainda no magistério, quando era adolescente. Foram 23 anos até chegar a trabalhar, diretamente, com computação.

Pandemia

Com o esforço e dedicação que aquela menina da “história de antigamente” sempre teve com os estudos e o trabalho, as funções se expandiram além da Geociência, Matemática, Estatística e Computação. Eniuce chegou a dar aula de inglês científico (English Scientific Communication), na Pós-Graduação em Bioestatísca. O gosto pelo novo idioma começou durante a graduação e, de lá pra cá, ela participou, como aluna, de diversos cursos. Eniuce também se dedicou à área da comunicação, com o projeto Ciência na Praça, em que cientistas da UEM levam, de maneira mais simples, a ciência para a população, nas ruas da cidade. 

Mas esses são trabalhos anteriores a março de 2020, quando teve início o lockdown em Maringá, devido à pandemia de Covid-19. Nesse período, Eniuce participou de uma ação, que chegou a ser publicada na The Lancet, uma revista importante na área da saúde. Seu grupo utilizou a metodologia da Inteligência Artificial para detectar lugares no Brasil com grandes queimadas, associando-as com doenças respiratórias e com o agravamento no caso do Covid-19. A equipe concluiu que as pessoas mais próximas dessas regiões possuem uma estrutura respiratória mais limitada, tornando-as pacientes com um maior risco de morte por Covid.

Eniuce contribuiu, também, com o SpectroCheck, teste para Covid-19 sem a necessidade de coleta de material biológico do paciente, criado na UEM. Ela realizou toda a parte de bioestatística e de planejamento do projeto. Também participou da implementação da ferramenta ArboviControl, que gera relatórios sobre a dengue com base em dados do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan). Idealizada pela universidade e pela Secretaria de Estado da Saúde (Sesa), essa ferramenta é capaz de gerar relatórios com dados atualizados semanalmente. A Sesa, as 22 Regionais de Saúde e cada um dos 399 municípios paranaenses utilizam o ArboviControl, que, inclusive, apresenta informações de dengue por bairros. 

Todos esses projetos foram realizados durante a pandemia, em meio às dificuldades de transição da aula presencial para a aula on-line, as relações com fake news e o descrédito com a ciência e a diminuição do investimento para universidades e pesquisas. Eniuce comenta que, no bolso dela, especificamente, não houve nenhuma alteração, mas alguns alunos que a auxiliam nas pesquisas perderam as bolsas, o que tornou o trabalho muito mais difícil.

Assim como aquela menina de vida simples conseguiu criar forças para sair do sítio e estudar, a Eniuce, hoje, consegue reunir forças para enfrentar todos esses problemas da carreira acadêmica. E declara: “é preciso gostar do que faz para dar conta de tudo. O que me deixa mais forte é o trabalho. Não consigo me ver sem pesquisar, sem estar envolvida. Inclusive, eu acabo me envolvendo mais do que eu devo, e nessa, querendo ou não, acabo me fortalecendo”.

Eniuce, no sítio onde passou toda a infância e a adolescência (Arquivo pessoal)

Confira a quarta temporada do podcast “Donas da ciência”, e ouça a história da Eniuce contada por ela mesma

Donas da Ciência – T4 E2 – Eniuce Souza C² Conexão Ciência

A pesquisadora Eniuce Souza conta sua história, mencionando sobre sua infância e como sempre se interessou pela área de matemática e de computação.

O conteúdo desta página foi produzido por

Texto: Rafael Donadio
Arte: Murilo Mokwa
Revisão: Ana Paula Machado Velho
Supervisão de Arte: Tiago Franklin Lucena
Edição Digital: Gutembergue Junior


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