Márcia Edilaine Lopes Consolaro: uma leitora voraz, que alia o prazer ao saber

Gostar de ler deu à pesquisadora poderes especiais para ajudar pessoas com suas pesquisas científicas

Se tem algo que faz brilhar o olhar dessa renomada pesquisadora é o encanto pela leitura. Perguntada sobre o que mais gosta de fazer, a reposta é imediata: ler! E na infância? – Ler! Hobby ou passatempo preferido? – Ler! 

Filha caçula de três meninas, Márcia sempre foi uma criança participativa e espontânea nas atividades escolares. Se tinha que subir no palco, dançar, falar, discursar ou fazer homenagens, lá estava ela. A escola municipal da pequena cidade de Marialva, no interior do Paraná, era muito simples e sem recursos. Nos eventos, eram os pais da Márcia que ajudavam com os figurinos para que ela pudesse brilhar no palco. 

Nascida e criada na mesma cidade, Márcia não teve muita chance fazer qualquer outra atividade que não fosse escolar. O pai, um português rigoroso e turrão, só permitia que as filhas transitassem entre casa e escola. Não podiam brincar na rua e, menos ainda, ir à casa de amiguinhas. 

Para o pai, trabalhador árduo da agricultura e pecuária, o importante sempre foi acumular recursos financeiros. Apesar do pouco estudo, ensinou às filhas a importância de estudar e trabalhar para não depender financeiramente de marido. Isso entrou logo cedo na cabecinha da filha mais nova. 

Mas a escolha da vida acadêmica não coube no entendimento do pai. Márcia conta que a família não entendia como ela era doutora e não era médica. Quando tinha um trabalho de pesquisa publicado, o pai perguntava quanto receberia por isso. Ao falar do convite do Ministério da Saúde, a primeira pergunta era sobre salário. Diagnosticado com mal de Alzheimer, há pouco tempo, Márcia acredita que o pai nunca entendeu a importância do seu trabalho na ciência. 

Na infância, tinha um tio no interior de São Paulo que trabalhava numa banca de jornal e sempre trazia gibis usados, deixados na banca, para as sobrinhas. Como demorava meses para voltar com novas revistinhas, Márcia lia e relia infinitas vezes as mesmas histórias e, assim, descobriu a paixão pela leitura. Quando a família visitava o tio, era na banca que Márcia mais se divertia com tanta coisa para explorar. A biblioteca municipal era seu local preferido. Lá, passava horas e horas lendo tudo que podia.

Sempre muito estudiosa e obediente, não tinha notas baixas nem era chamada a atenção por pais ou professores. Adulta, descobriu um déficit de atenção, e sabe que o perfil de aluna dedicada a livrou de apuros no processo de aprendizagem.

Na adolescência, teve acne severa. Como muitas jovens com esse problema, sofreu sozinha e preferiu se isolar. As muitas amizades que tinha foram deixadas de lado e a leitura foi mais do que uma aliada para superar o difícil período da doença de pele. 

Quando fala da escolha da profissão, diz que sempre soube que atuaria na área biológica ou da saúde. Quanto mais estudava o corpo humano, mais se apaixonava. Não estudar nunca passou pela cabeça e Medicina foi a primeira opção. Como ainda não tinha o curso na Universidade Estadual de Maringá (UEM), o pai não a deixaria estudar mais longe, em um local que não pudesse ir e voltar para casa todos os dias. Farmácia era o segundo melhor curso da área da saúde e ela passou no vestibular com a melhor pontuação de todos os cursos. 

No segundo ano, um professor a convocou para apresentar um seminário. Naquele momento, ela foi elogiada pelo mestre, que também decretou que ela seria docente da UEM. Márcia lembra que isso nem passava pela cabeça dela. O objetivo era estudar e trabalhar e não sabia o que era carreira acadêmica. 

Estimulada pelo professor, entrou para a pesquisa, sendo a primeira bolsista de iniciação científica do curso de Farmácia da UEM. Mesmo assim, ao se graduar, foi trabalhar como responsável técnica em uma farmácia. 

Decepcionada com a rotina de trabalho, ficou apenas três meses. Sentia falta de ler, de estudar mais. Querendo estudar ainda mais do que já havia estudado até aquele momento, foi trabalhar em farmácia hospitalar, onde se identificou de imediato com a patologia clínica. Nesse período, foi convidada a dar aula na Universidade Paranaense (Unipar). Também soube da prova de mestrado da UEM e, então, a vida acadêmica deslanchou.

Márcia Edilaine Lopes Consolaro (ASC/UEM)

No último ano da graduação, enfrentou o machismo e a autoridade do pai e foi morar com uma professora, que virou amiga, para facilitar os estudos. Assim, conheceu o marido, já graduado em Farmácia e ex-aluno da amiga docente. Esse ano, o casal comemora 30 anos de união com dois filhos na graduação. Eis o motivo pelo qual deu um tempo na carreira. Com dois filhos pequenos, o marido sempre viajando a trabalho, a pesquisadora preferiu se dedicar à maternidade antes de ingressar no doutorado. 

Para Márcia, ainda é muito difícil a mulher conciliar filhos e a vida acadêmica. Ela disse que “as duas situações exigem tempo e dedicação. A mulher ainda é muito cobrada, tem que provar tudo o tempo inteiro, a ciência é uma área extremamente competitiva e quem está fora nem entende, porque a disputa não é pelo dinheiro. Apesar das várias conquistas, as obrigações da mulher se mantiveram e isso é muito desgastante”. Ainda existem algumas áreas predominantemente masculinas e falta incentivo, ainda na infância, para as meninas atuarem nesses espaços, explica. 

Outra observação importante que faz é sobre a questão de gênero dentro da ciência, em que a mulher ainda é minoria e vista de forma inferior. Como exemplo, cita bolsistas de produtividade do Conselho Nacional de Pesquisas (CNPq), na maioria homens, que são avaliados pelos seus pares, ou seja, a mulher ainda tem muitas barreiras na ciência para se sobressair dentro dela. A comunidade científica faz parte da mesma sociedade que ainda carrega o machismo arraigado, velado ou não, conclui.

Com artigos publicados em reconhecidas revistas científicas, o foco principal da pesquisadora são as Doenças Sexualmente Transmissíveis. A cientista é uma das precursoras na investigação sobre a transmissão do zika vírus por relações sexuais, iniciada em 2016. “Conseguimos o primeiro caso da América Latina” afirma.

Márcia torce agora para que uma das suas várias pesquisas se torne política pública de prevenção do câncer de colo de útero. Convidada pelo Ministério da Saúde, coordena um projeto piloto multicêntrico na área, desenvolvido em todo o país. A ideia é comparar o rastreio do câncer de colo do útero com o exame de Papanicolau, realizado pela rede pública de saúde e a autocoleta (teste de HPV) em mulheres que não fizeram o exame citológico nos últimos quatro anos ou mais, nas cinco regiões brasileiras. Com o suporte de agentes comunitários de saúde em visita domiciliar, a mulher recebe um kit e coleta o próprio material para o exame preventivo. A perspectiva é que a pesquisa apresente dados que embasem a implantação da autocoleta para prevenir a doença e atingir o interesse comum. Se isso acontecer, disse Márcia, “será o ápice da minha carreira”.

Pandemia

Após o susto inicial, Márcia acredita que poderia ter contribuído de forma diferente no combate ao vírus. Ela lembrou, por exemplo, que os equipamentos para detecção molecular foram pouco aproveitados pela instituição na resposta à pandemia. 

A pesquisadora não interrompeu nenhuma atividade em desenvolvimento e viu a carga de trabalho quadruplicar. Acumulou as pesquisas iniciadas, mais pandemia e mais Covid, disse. Como já fazia parte de uma rede nacional de pesquisadores, o grupo se voltou para a pesquisa do Sars-CoV-2, por meio da Rede Brasileira de Covid (Rebracovid), da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), que coordena o estudo multicêntrico de história natural do novo coronavírus no Brasil. A Rebracovid teve sua importância reconhecida e passou a ser financiada também pela União Europeia.

Por conta dessas pesquisas, Márcia desenvolveu várias ações dentro do Hospital Universitário de Maringá (HUM/UEM), além de participar de outros projetos com editais contemplados para o estudo da Covid. Recentemente, foi convidada, também, pelo Ministério da Saúde para assumir a coordenação geral da distribuição de vacinas no Brasil, mas declinou do convite para não morar em Brasília. É muita ciência para pouca Márcia ou muita Márcia para pouca ciência? Você decide!

Márcia aos 9 anos e seus livros, amigos inseparáveis (Arquivo pessoal)

Confira a segunda temporada do podcast “Donas da ciência”, e ouça a história da Márcia contada por ela mesma

Donas da Ciência – T2 E3 – Márcia Edilaine Lopes Consolaro Conexão Ciência C²

Neste episódio, ouça a história da professora Márcia Edilaine Lopes Consolaro, graduada em Farmácia-Bioquímica, pela UEM, que conta como superou suas dificuldades a fim de se dedicar aos estudos e a sua carreira.

O conteúdo desta página foi produzido por

Texto: Noth Camarão
Arte: Murilo Mokwa
Revisão: Ana Paula Machado Velho
Supervisão de Arte: Tiago Franklin Lucena
Edição Digital: Gutembergue Junior


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