Maria Aparecida Salci: uma cientista de fala mansa, ávida pela pesquisa e professora pela própria natureza

A pequena que sonhava em morar na cidade grande realizou muito mais que podia imaginar

Observadora e analítica, Cidinha, como é chamada pelos mais próximos, aprendeu, desde pequena, a usar essas habilidades para direcionar a vida e realizar seus sonhos.

Maria Aparecida Salci (ASC/UEM)

Terceira de quatro filhos, com diferença de cinco anos entre os três primeiros, Maria Aparecida estava com quase dez quando nasceu a irmã caçula.

Filha de comerciante, cresceu na pequena Flórida, interior do Paraná, teve uma infância feliz, com muitas lembranças boas e base familiar sólida. Com a diferença de idade entre os irmãos, brincou e estudou com “azamigas” ainda presentes em sua vida.

O pai tinha um conhecido mercadinho na região central da cidade e por onde a menina passava era reconhecida. Com a inseparável bicicleta Ceci prata, Cidinha andava por toda a parte até não caber mais no seu meio de locomoção. Ainda guarda na memória a sensação de liberdade em cima da bike

Filha obediente, irmã querida, aluna aplicada. Sempre estudou e brincou muito, além de contribuir espontaneamente com os afazeres do lar. Sua mãe costurava, ajudava o pai no mercado e administrava a casa. Ao encerrar o expediente, a filha percebia o cansaço dos pais e do irmão, que já trabalhava no mercado, e, aos nove anos, colocava a mesa e servia o jantar.  Nessa época, a caçula nasceu e a irmã mais velha saiu para estudar, casou e foi morar em Iguaraçu, distante 23 km de Flórida. Cidinha cuidou da bebê com muito afeto e era chamada de “irmãe” pela família. Dava banho, fazia a papinha e alimentava a pequena. “Foi um presente na minha vida”, disse.

Sempre que o pai saia para fazer compras em Maringá, distante 50 km, Aparecida ia junto. Na estrada, sonhava, um dia, morar naquela cidade grande. Aos poucos, o grande foi redimensionado, mas ela nunca deixou de sonhar em morar na Cidade Canção, Maringá (PR).

Para orgulho da mãe, no ensino médio, optou pelo Magistério. Ser professora era algo que pensava com carinho e o que tinha de opção ao alcance.

Aos 18 anos, finalmente realizou seu maior sonho até então: passou no vestibular da Universidade Estadual de Maringá (UEM) e foi morar na cidade que tanto desejava. 

Se para a irmã mais velha sair de casa para estudar foi difícil, para Aparecida o embate com o machismo do pai foi menor. Ela percebia que ele havia mudado. Na verdade, aquele pai austero que poucas vezes a deixava sair no início da adolescência, se tornara um pai que a empoderava para estudar, aprender a dirigir e tomar as rédeas da própria vida, sonho maior da filha. Quando estudava até tarde, era ele que vinha lembrar que ela tinha que dormir porque acordaria cedo na manhã seguinte. 

Aparecida lembra que teve dois pais contando com diferença de idade do irmão. Era ele que levava, buscava e, muitas vezes, ficava nas festinhas que ela ia. Nunca questionou o machismo explícito dos dois nem o velado da mãe. Suas habilidades de observar e analisar indicavam quando deveria pedir para sair ou não. Se o momento era ruim e o não pairava no ar, Aparecida nem arriscava reivindicar uma aventura nos embalos de sábado à noite. 

Nunca foi dos esportes. Aprendeu atividades manuais e gostava de passar seu tempo entre o crochê, tricô, costura, montagem de bijuterias ou pintura em tecido e, mais tarde, em tela. Leitura era algo implícito ao seu ser. Sempre gostou muito. Aparecida conta que tinha receio de não passar no vestibular e leu e releu todos os livros recomendados.  

Assim seguiu até o grande momento de sair de casa. E, lógico, que antes de fazer a escolha da profissão, fez uma rica pesquisa, com a ajuda da irmã graduada em Farmácia, sobre o mercado de trabalho usando mais uma vez sua capacidade observadora e analítica. O curso de Farmácia estava em alta, mas a Enfermagem apresentava carência de profissionais, com remuneração melhor e campo de atuação mais abrangente na avaliação dela. Assim, ingressou na graduação.

O foco era sair da faculdade empregada e alcançar sua independência financeira com o resultado do seu estudo. Missão cumprida com louvor. Encerrou as atividades acadêmicas e, antes da colação de grau, já estava registrada em uma clínica de oncologia, indicada por uma professora. “Outro grande presente”, declarou.

O primeiro ano na graduação foi de peregrinação. Passou uns meses na casa de um tio, em Sarandi, município vizinho, e outro período na casa da irmã mais velha, em Iguaraçu, a 30 km de Maringá. Com as atividades práticas, no segundo ano precisou fixar residência perto da universidade, dividindo aluguel com várias estudantes. Em seguida, para receber bolsa de estudo, passou a integrar projetos de extensão, de pesquisa e de ensino. Se tinha oportunidade, ela estava lá. Isso ajudou a ser uma aluna de inserção na pesquisa no período de formação.

O desejo de lecionar nunca foi deixado de lado. Optou por licenciatura de olho na informação da pesquisa de mercado, que também apontava falta de professores em cursos técnicos e de graduação.  Nesse período, a docência ainda não estava definida. Aparecida tinha sede de saber, queria aprender, agregar valores para depois fazer escolhas. 

Por cinco anos, entre a graduação e o mestrado, trabalhou na clínica oncológica, no hospital psiquiátrico e fez uma especialização em saúde mental. Surgiu então uma bolsa técnica, no período da tarde, que a reaproximou da universidade querida. Por um bom tempo, se desdobrou entre as três atividades. Nesse período, despertou o interesse pelo mestrado que estava sendo implantado na UEM e foi aluna da primeira turma onde hoje dá aula. Aparecida conta que toda essa experiência a capacitaram ainda mais para a docência.

No segundo ano do mestrado, foi assediada por uma universidade particular onde começou a lecionar. No ano seguinte, assumiu a coordenação do curso de enfermagem. Pouco tempo depois prestou concurso na UEM (um dos últimos que aceitava mestres) e saiu da iniciativa privada. 

Nesse meio tempo, a sobrinha de 17 anos, que acabara de passar no vestibular e moradora de Iguaraçu, pediu que a tia a levasse para conhecer a noite maringaense. Após muita insistência a tia a levou para um rolê. Era uma festa bacana numa casa noturna da cidade. E não é que a Cinderela conheceu seu príncipe encantado sem nem precisar usar sapatinho de cristal! Pois é. Maria Aparecida conheceu o marido assim. Hoje, tem uma menina de 10 e um menino de 5 aninhos.

Um ano depois de casada, resolveu fazer doutorado na Federal de Santa Catarina, onde foi muito bem acolhida. Mas enfrentou novamente o machismo na família. Irmão e mãe questionaram como iria morar em outro estado recém-casada. O príncipe, quer dizer, o marido, saiu em defesa e disse que ela iria com todo o apoio dele. 

A jovem cientista se declara uma mulher plena, com escolhas assertivas e vive um momento de grande realização profissional. Empoderada e intensa em tudo que faz, diz que faria tudo de novo, do mesmo jeitinho. 

Pandemia

Apesar do pavor do primeiro momento, a preocupação era explicar às crianças, com 3 e 8 anos, de forma que entendessem e não se assustassem. Logo depois, começaram as ações coletivas pelas redes sociais. Nesse momento, a ciência falou mais alto e Maria Aparecida se deu conta que tinha que ajudar a sociedade com seus conhecimentos e recursos.

Seu grupo de pesquisa era de condições crônicas e a pesquisadora teve, naquele momento, um outro olhar sobre a situação. Enquanto o mundo implantava protocolos de cuidados para evitar a contaminação, ela se perguntou como seria a vida dos contaminados após a alta hospitalar. 

Com o olhar voltado para a cronicidade, no final de março de 2020, investigou o que havia de estudo e, em abril, se inscreveu em um edital propondo o projeto com o título “Acompanhamento longitudinal de adultos e idosos que receberam alta da internação hospitalar por COVID-19”. Em junho já estava na pesquisa em parceria com a Duke University(EUA) e Secretaria de Saúde do Estado do Paraná. O edital em que foi contemplada, o primeiro da pesquisadora e o primeiro sobre pesquisas pós-covid do país, saiu antes mesmo da Organização Mundial de Saúde (OMS) assumir que teria que se fazer pesquisa em pacientes que venceram a doença.

Seu maior desejo é que a humanidade aprenda a olhar mais para o coletivo, para alcançar uma sociedade mais igualitária. Sua luta é em defesa da universidade pública, que ancora a pesquisa e fortalece a ciência de forma indiscutível. Com habilidades natas e olhar profundo para o cuidado com o próximo, não duvide do que essa delicada e dedicada cientista pode conquistar. 

Maria Aparecida aos 8 anos na escola estadual da sua pequena Flórida (Arquivo pessoal)

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O conteúdo desta página foi produzido por

Texto: Noth Camarão
Arte: Murilo Mokwa
Revisão: Ana Paula Machado Velho
Supervisão de Arte: Tiago Franklin Lucena
Edição Digital: Gutembergue Junior


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