Josiane Oliveira: consciência com ciência

O conhecimento que mudou o tom de uma trajetória de vida para dar visibilidade a questões raciais

Oficialmente, o Brasil não tem segregação racial, mas o racismo arraigado provoca a segregação social desde a abolição do trabalho escravo, em 1888. Muitos anos depois, vencer as dificuldades, superar a discriminação e enfrentar desigualdade ainda é parte do cotidiano de classes historicamente excluídas. 

Josiane Silva de Oliveira que o diga. Sempre que fala que é filha de um baiano e uma paranaense, quem a ouve tem a certeza que sua ascendência negra é por parte do pai. Ledo engano de conceito preconcebido. A mãe sulista é negra e o pai nordestino tinha a pele clara. A professora conta que até no pós-doutorado houve quem se espantasse com uma mulher negra na academia.

Josiane Silva de Oliveira (Arquivo pessoal)

“Fiz meu doutorado no Rio Grande do Sul, de 2010 a 2014. Algumas pessoas ainda estranhavam o fato de uma negra ter passado por um processo seletivo, com prova de inglês, e me perguntavam de que país da África eu era . Quando eu falava que era do Paraná, sentia o climão. No pós-doc, na Universidade de Quebec, no Canadá, não tinham ideia do que era o Brasil. Quando cheguei lá, fiquei impressionada com o investimento na ciência e a comunidade acadêmica se surpreendeu comigo porque imaginavam que aqui só tinha negros e a maioria dos brasileiros que vão estudar lá é branca e parecida com eles. A gente tinha um grupo de pesquisa só sobre o Brasil. Além de não saber nada sobre o nosso país, eles também não tinham muita noção de como o racismo funciona e como isso impõem limitações para a gente”, declara. 

Josiane nasceu em Maringá. Seu pai era motorista de transporte coletivo e faleceu cedo, deixando um filho de sete anos, Josiane com três e a esposa grávida. Sua mãe trabalhou muitos anos de empregada doméstica e ensinou aos filhos, desde muito cedo, que teriam que estudar para melhorar de vida. 

“Minha mãe falava que a gente ia encontrar muitas dificuldades na vida e que era melhor ser funcionário público porque assim não poderiam mandar a gente embora. Ela achava que numa empresa privada, na hora dos cortes, o preto era sempre o primeiro a ser demitido. Ela dizia que a educação era a única via de mudar a condição social e econômica. Então, quando a gente era criança, toda semana, ela tirava uma hora pra ler com a gente. Também, tínhamos que ir à biblioteca, pegar um livro e, no fim de semana, mostrar o livro que a gente leu e contar a história”, lembra.

Sempre ligada aos esportes, Josiane fala que “pessoas negras esportistas eram parte do cotidiano, mas, quando cheguei na escola, alguns estudantes tentavam me ofender falando que eu era filha do Pelé. Eu não entendia aquilo como ofensa, achava uma honra. Como essa fala persistiu, falei pra minha mãe porque eu não entendia o motivo deles ficarem falando aquilo pra mim. Eu tinha entre seis e sete anos e ela falou que era por causa da cor da minha pele e do meu cabelo. Só fui entender melhor aos 12. Imagino a frustração das crianças que tentavam me ofender, achavam que eu ia brigar e eu simplesmente gostava”.

A família morava ao lado da Universidade Estadual de Maringá (UEM). Na época, não tinha portões e eles passeavam e brincavam pelo câmpus como se fosse seu próprio quintal e mãe sempre dizia: “um dia vocês vão estudar aqui”. E assim, no ideário da pequena Josiane, crescia a vontade de ser cientista.

Josiane (primeira à esquerda) e participantes do Núcleo de Estudos Interdisciplinares Afro-brasileiros (Neiab) na XIII Semana Afrobrasileira da UEM (Facebook/NEIAB – UEM)

Após a morte do pai, a família se mudou para Mandaguaçu, a 20 km de Maringá, em busca de aluguel mais barato. A UEM ficou distante, mas nunca saiu do horizonte de Josiane que começou trabalhar aos 16 anos para ajudar a pagar as despesas da casa. 

No ensino médio, a maringaense e a mãe começaram a pensar como seria a vida da filha morando longe da universidade. Mudaram-se então para Sarandi, a 10 km de Maringá, e Josiane começou a pesquisar sobre as profissões que gostaria de exercer. Nesse período, ela achava que economia era uma boa opção. Sempre gostou mais dos números do que das letras e assistia na tv tudo que falava sobre inflação, juros e economia de modo geral. Analisando um pouco mais sua trajetória de vida, ela percebeu que faltava algo que pudesse fazer a diferença na vida de pessoas diferentes como sua família. No colégio, ela e o irmão eram as únicas crianças negras. “Não era da turma. Era da escola!”, ressalta. 

Essa situação já chamava sua atenção. “Era uma coisa que mexia muito comigo, eu queria entender. No ensino médio decidi que queria articular alguma coisa vinculada com a economia, mas com questões raciais.  Fiquei na dúvida entre economia e ciências sociais que era bem comentada na época. Numa visita à feira de profissões da UEM, organizada pela escola, pude ver mais de perto como se faz ciência e acabei escolhendo administração. Essa foi a forma que encontrei de vincular os debates raciais e procurar algumas saídas que eu achava que teria na economia. Eu ainda não tinha uma leitura estruturada sobre questões de gênero, orientação sexual e raça, mas eu tentava sistematizar e pensava que na economia encontraria uma forma de amenizar esses problemas sociais. Vi que a administração oferecia mais oportunidades”, explica.

Durante a faculdade, Josiane já era concursada e trabalhava na prefeitura de Maringá, como auxiliar de consultório dentário, na secretaria de saúde.  Ficou lá até o mestrado. Após o doutorado, voltou ao Brasil e foi trabalhar em Goiás como professora e de novo encontrou o julgamento antecipado. “Quando eu falava que era do sul, as pessoas se assustavam porque tinham em mente o estereótipo do sulista branco, que toma chimarrão”, recorda.

Na graduação, Josiane pensava em seguir no setor público ou trabalhar em alguma organização que tivesse a sociedade como sua grande preocupação. “Como já tinha passado pela iniciativa privada, sabia sobre a violência racial  e que dificilmente conseguiria alcançar um cargo mais alto. Em algumas multinacionais, até temos mais espaço, mas é frustrante saber que não importa a sua qualificação, em qualquer ambiente quem chega primeiro é a cor da pele. Não chega a Josiane, pós-graduada, especialista, com  experiência internacional. Quem chega primeiro é a mulher preta! Isso mostra o quanto a nossa individualidade é roubada no racismo. O preconceito racial possui essa característica de massificar a gente como sendo algo ruim”, expõe. 

Em entrevista ao programa Nuevo Debate, da UFPR TV, Josiane fala sobre a mulher negra na sociedade. Confira no vídeo abaixo: 

A cientista tem consciência do seu valor e sabe a importância do apoio que recebeu para estudar em outro país. Ela diz que, hoje, tem reconhecimento internacional, porque “lá atrás, o governo federal apostou na política e em mim. E está colhendo os frutos. Se não fosse por isso, dificilmente eu teria rompido o ciclo de mulheres negras da minha família que não tiveram acesso a educação e até mesmo, a possibilidade de escolher. E quando eu falo de possibilidade me refiro a coisas bem básicas, como você ir no mercado e não conseguir escolher a marca do sabão em pó, ou do que você irá comer no final do dia. A educação também dá essa possibilidade de poder escolher. Não só sobreviver, mas viver. E é isso que a gente quer”, declara. 

Josiane ressalta a importância das bolsas de estudos e afirma que sua trajetória só foi possível com essa ajuda financeira. “Quando fui para o Rio Grande do Sul, recebi uma bolsa de doutorado para me sustentar. O mesmo aconteceu quando passei por um edital de seleção e recebi a bolsa de estudo para o Canadá. Não é só o dinheiro em si. É a forma como foi construída essa política. Temos que pensar nos critérios que envolvem esse processo para que não se tornem mais excludentes ainda.  

A pesquisadora revela que “não teve nenhum lugar que eu passei que não tivesse algum estranhamento. Até mesmo dentro dos movimentos negros, há a questão do sexismo. Há violência de gênero e violência racial. Você percebe os olhares. Na sala de aula, ainda ouço alunos dizendo que eu sou a primeira professora negra deles”.

Os movimentos negros começaram ainda no período de escravidão. Ao longo dos anos, se fortaleceram e são responsáveis por várias conquistas da comunidade que por séculos sofreu, e ainda sofre, injustiça. Triste é reconhecer que o reflexo das políticas escravocratas ainda são visíveis nos dias atuais. Até quando, Brasil?

Confira o podcast Igualdade e Ciência, em que Josiane conta a sua história de vida.

Igualdade & Ciência – Episódio 2 – Josiane Conexão Ciência C²

O conteúdo desta página foi produzido por

Texto: Noth Camarão
Revisão: Ana Paula Machado Velho
Arte: Murilo Mokwa
Supervisão de Arte: Tiago Franklin Lucena
Edição Digital: Gutembergue Junior


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