Um tratamento para tuberculose que veio da pariparoba

Substância orgânica extraída de planta pode ser alternativa mais barata, mais rápida e menos poluente para tratamento da tuberculose

“Queria a tísica com todas as suas peripécias, queria ir definhando liricamente, soltando sempre os últimos cantos da vida e depois expirar no meio de perfumes debaixo do céu azulado da Itália, ou no meio dessa natureza sublime que rodeia o Queimado.” Imagine alguém, em 2021, clamando pela infecção do Covid-19. Este era o desejo do poeta Casimiro de Abreu em relação à tísica ou “peste branca”, como era conhecida a tuberculose (TB).

No século XIX, a TB era vista de forma romântica e até “positiva” pela sociedade. O tuberculoso era percebido em uma posição de refinamento, especialmente entre intelectuais e artistas. E, sim, a comparação feita entre as doenças é válida, afinal, no século retrasado, são descritos cerca de 700 óbitos a cada 10 mil habitantes.

A visão romântica da tuberculose entre os escritores foi o assunto da conversa com Diego Fascina, professor da UEM e Unicesumar.

🎧 Diego Fascina conta como os escritores do passado sofreram com a tuberculose

Em 2020, de acordo com o último relatório da Organização Mundial de Saúde (OMS), foi estimado que cerca de 1,2 milhão de pessoas morreram vítimas de TB em todo o mundo. Além disso, cerca de 10 milhões de indivíduos desenvolveram a forma ativa da doença. Mas, diferentemente da doença pandêmica atual, a TB é uma doença bacteriana infecciosa causada pela Mycobacterium tuberculosis

Dona Vitalina, de 76 anos, aposentada como auxiliar de enfermagem em Goioerê, não clamou pela peste branca, mas, mesmo sem convite, em outubro de 2018 a doença chegou. Veio silenciosa, causando uma coceira na garganta, e logo se acomodou. Junto, trouxe febre, dor no peito e muita tosse com secreção. 

“Eu perdi uns 15 quilos, não conseguia comer de jeito nenhum. Fui para 39 quilos, agora que estou com 45”, relata Vitalina, com a ajuda da sobrinha Silviamara, que acompanha a tia em todo o tratamento, de laboratório em laboratório, médico em médico.

Vitalina e Mara sentadas no sofá
📷 Vitalina e Mara

Conhecida como Mara, a sobrinha da ex-auxiliar de enfermagem atrasou alguns minutos a conversa agendada, porque estava com uma outra tia no oftalmologista. Preocupada com a família, foram ela e os pais que resolveram trazer Dona Vitalina para Maringá. 

Em Goioerê, os seis meses sem tratamento causaram uma piora na doença de Vitalina, o que gerou uma evolução para tuberculose multirresistente. Ou seja, resistente a pelo menos dois dos quatro medicamentos do tratamento preconizado pela OMS: Rifampicina, Isoniazida, Pirazinamida e Etambutol.

Esses fármacos apresentam uma certa toxicidade hepática e gástrica,  e os pacientes sentem dores articulares. Durante o tratamento, essas medicações devem ser tomadas durante seis meses, diariamente. São dois meses de Rifampicina, Isoniazida, Pirazinamida e Etambutol e, passados os dois primeiros meses, o paciente toma Rifampicina e Isoniazida por mais quatro meses.

Os casos de TB multirresistente não são raros e a coordenadora do Laboratório de Ensino e Pesquisa de Análises Clínicas (Lepac) da UEM, Rosilene Fressatti Cardoso, explica o porquê: “Nos dois primeiros meses de tratamento, o paciente tem uma melhora drástica. Ele sente que melhorou e acha que não precisa mais de medicação e não vai até o fim. Ou também sente muito mal-estar, um desconforto muito grande, problemas hepáticos, dores articulares, então ele abandona o tratamento e some.”

Está criado o problema. Na maioria das vezes, a doença retorna com bactérias resistentes aos medicamentos. Nesses casos, o novo tratamento demora até dois anos, com outras medicações, administradas todos os dias, e às vezes injetáveis. E mais, enquanto é feito o exame antibiograma, para se descobrir a sensibilidade da nova bactéria, o paciente está com a doença, infectando outras pessoas.

Enquanto Dona Vitalina espera o resultado da cultura para diagnosticar a especificidade e sensibilidade da bactéria, para poder iniciar com novos medicamentos, ela realiza um tratamento paliativo e tem cuidados em dobro por causa da covid-19. Não sai de casa desde março de 2020, a não ser para consultas e exames.

Medicamentos de origem natural para tuberculose

A resistência da bactéria e a baixa eficácia do tratamento de primeira linha foi o motivo de Dona Vitalina ser convidada a participar do estudo da professora Regiane Bertin de Lima Scodro, que este ano obteve a patente referente ao processo que permite extração de substâncias orgânicas da planta Piper regnellii (conhecida por pariparoba). Esse processo pode ser utilizado na elaboração de medicamentos, ajudando na busca de novas opções no tratamento da tuberculose. 

A patente foi concedida pelo Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI) e se refere ao estudo intitulado “Obtenção de neolignanas com atividade antimicobacteriana”.

Neolignanas são substâncias orgânicas vegetais com potencial de ação para o tratamento da TB. Esses elementos são extraídos da pariparoba a partir de uma técnica conhecida como fluido supercrítico, que consiste na utilização de uma substância líquida obtida de uma substância gasosa sob alta pressão e temperatura. No caso específico, foi utilizado o dióxido de carbono (CO₂). Esse método não utiliza outros tipos de solventes, portanto, é mais rápido, barato e não causa prejuízos ao meio ambiente.

A partir de plantas empregadas em pesquisas mais antigas do Professor Doutor Diógenes Cortez (in memorian), do Programa de Pós-Graduação em Ciências Farmacêuticas, Regiane testou diversos tipos de extração em dezenas de plantas da mesma família da pariparoba, antes de chegar ao resultado desejado. Todas as amostras foram retiradas do Horto de Plantas Medicinais Professora Irenice Silva, mantido dentro da própria universidade.

 “A gente vê como é difícil manter o tratamento, muitas pessoas desistem, o que leva a seleção de bactérias resistentes ou reinfecção. O que a gente busca com essa metodologia, com essa linha de pesquisa, é tentar achar novos fármacos para as bactérias resistentes. Queremos ajudar quem não tem o que fazer depois da não eficácia do tratamento já estabelecido”, explica Regiane, lembrando da dificuldade dessa caminhada, que só é possível com parcerias e financiamento. 

Além disso, esses achados estabelecem novas linhas de pesquisa, que irão ajudar estudos futuros de outros alunos e pós-graduandos. “A Rosilene é responsável por tudo isso. Ela é responsável pelo laboratório existir e ser tão bom como é hoje, e pelo diagnóstico ser tão bom e ser referência como é hoje. E a pesquisa feita agora acaba melhorando ainda mais os diagnósticos”, homenageia a pesquisadora. 

Rosilene retribui o elogio e ressalta que, a partir do estudo feito pela Regiane, novas pesquisas utilizando a mesma metodologia podem surgir. Além da possibilidade de fazer derivações químicas e dar continuidade à pesquisa a partir do conhecimento das novas formulações obtidas. 

Esse também pode ser um começo para que o Governo realize a produção de medicamentos mais baratos, diagnóstico mais funcional e que diminua o índice de TB. Pelo fato de a doença atingir uma faixa etária mais produtiva do país, dos 15 aos 60 anos, novos medicamentos podem favorecer, inclusive, a economia nacional. O tratamento atual para a tuberculose multirresistente chega a custar 10 mil reais por paciente.

Regiane completa que novos estudos, acerca de como as neolignanas interagem com o micro-organismo causador da doença, já estão em planejamento e permitirão parcerias entre a UEM e instituições de nível nacional e internacional.

O processo de obtenção da patente, por sua vez, é quase tão penoso quanto as pesquisas realizadas com a Mycobacterium tuberculosis, microrganismo com um complexo e demorado processo de cultivo em laboratório.

O processo para obtenção de patente tem o auxílio do Núcleo de Inovação Tecnológica (NIT) da UEM, para que possa ser enviado para o instituto responsável no Brasil, o Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI). São vários formulários preenchidos pelos pesquisadores, informando tudo o que foi realizado durante o estudo, todos os profissionais que trabalharam na invenção e todas as reivindicações solicitadas. No caso de Regiane, neste estudo, foi solicitado o processo de obtenção e uso das neolignanas para tuberculose.

Dentro do NIT, existe ainda o Comitê Institucional de Bolsas de Desenvolvimento Tecnológico e Inovação (CIBIT), responsável pela análise da documentação e processos relatados. Enquanto todas essas etapas são realizadas, realiza-se ainda a procura por uma possível patente para a mesma reivindicação. Dentro do site do INPI existem informações do modo adequado de se buscar uma patente, e quais sites devem ser pesquisados para essa pesquisa. Essa pesquisa e os resultados também devem ser descritos nos formulários enviados para o NIT.

Segundo a professora Regiane, o julgamento de uma patente realizada pelo INPI chega a demorar 10 anos, depois de todas as pesquisas e formulários e documentos enviados. O julgamento da patente de obtenção e uso farmacológico de neolignanas a partir de folhas de Piper regnelli para aplicação no tratamento de doenças causadas por Mycobacterium tuberculosis demorou oito anos.

Lepac 

Criado inicialmente para viabilizar as disciplinas profissionalizantes do curso de Farmácia e, mais recentemente, do curso de Biomedicina, o Lepac – Laboratório de Ensino e Pesquisa em Análises Clínicas é ligado ao Departamento de Análises Clínicas e Biomedicina da Universidade Estadual de Maringá e passou a funcionar a partir de 1983. 

Ao longo do tempo o laboratório expandiu as atividades e se consolidou como centro de apoio ao ensino de graduação e de pós-graduação, especialmente nos programas de Mestrado e Doutorado em Biociências e Fisiopatologia, em Ciências da Saúde e no programa de Residência em Farmácia com Ênfase em Análises Clínicas na Atenção à Urgência e Emergência, da UEM.

A professora Rosilene Fressatti Cardoso fez parte de todo processo de implementação do trabalho e pesquisa com tuberculose do Lepac. Convidada pelo seu então professor em 1986, Celso Luiz Cardoso, ela passou 40 dias em treinamento intensivo de treinamento em diagnóstico de tuberculose no Centro de Referência Professor Hélio Fraga (CRPHF), local referência em diagnóstico no Brasil. 

Em 1987, depois de sua volta para Maringá, o laboratório de TB passou a ser implantado. Ele tomou corpo quando a universidade formalizou um convênio com o Estado, assumindo todos os exames de diagnóstico para tuberculose e hanseníase dos municípios que pertencem à 15ª Regional de Saúde (15ª RS), atendendo 30 municípios. 

Em 1996, Rosilene foi convidada pela coordenação do Lepac a montar o teste de susceptibilidade aos fármacos antituberculose: “Junto com alguns alunos de iniciação científica, nós fomos montando esse arsenal de exames que até então não era feito no nosso laboratório”, conta a pesquisadora. 

Em 2003, iniciaram-se pesquisas com a participação de alunos de mestrado e doutorado, após Rosilene ser convidada para participar de dois programas de pós-graduação que estavam abrindo na instituição: Ciências da Saúde e Biociência e Fisiopatologia.

“O laboratório de tuberculose tem, informalmente, 35 anos e, formalmente, 25, desde sua implantação para diagnóstico. Hoje a gente atende vários municípios, nós somos referência em diagnóstico de tuberculose. Além disso, nós utilizamos várias metodologias que foram desenvolvidas pelas pesquisas dessas duas pós. A Regiane encabeçou as pesquisas para novos fármacos, desde 2006, uma linha de pesquisa que ela abriu dentro do nosso laboratório de pesquisa”, relata, orgulhosa, Rosilene.

A pesquisadora completa, “O nosso objetivo é fazer uma pesquisa de ponta, mas que essa pesquisa chegue ao paciente um dia”. Chegou e continua chegando cada vez mais. O laboratório é referência da macrorregião Noroeste do Paraná, que abarca 113 municípios, disponibilizando exames laboratoriais de alta complexidade que não são realizados na Rede Básica do Sistema Único de Saúde e na rede privada. Atua também no monitoramento de pacientes portadores crônicos das hepatites B e C, atendendo as 11ª RS, 12ª RS, 13ª RS, 14ª RS e 15ª RS.

É também o único laboratório especializado no diagnóstico de fungos patogênicos (Paracoccidioidomicose, Histoplasmose) na macrorregião Noroeste do Paraná. Referência regional para o diagnóstico de meningites, leishmaniose, hanseníase e doenças íctero-hemorrágicas, caracterizando-o como um laboratório eminentemente epidemiológico.

Desde 2014, é o único laboratório público, credenciado ao SUS, para realizar a análise de citologia oncótica de colo de útero, ofertada à população do Paraná. O controle do câncer do colo do útero é hoje uma prioridade da agenda de saúde do país e integra o Plano de Ações Estratégicas para o Enfrentamento das Doenças Crônicas Não Transmissíveis (DCNT) no Brasil.

O conteúdo desta página foi produzido por

Texto: Rafael Donadio
Edição de áudio: Lorena Dutra de Moura
Roteiro de vídeo: Rafael Donadio
Edição de vídeo: Rafael Donadio
Supervisão: Ana Paula Machado Velho
Imagens: Lorena Dutra de Moura e arquivo pessoal
Arte: John Vitor Makallister Zegobia Ferreira

A pesquisa que mencionamos contribui para os seguintes ODS:


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