O corpo negro na paleta de cores do balé clássico

Physical Cultural Studies (PCS ou Estudos Culturais Físicos) discute práticas da Educação Física em diálogo com as ciências humanas e sociais

A publicação da bailarina brasileira Ingrid Silva, no Twitter, em 1º de novembro de 2019, causou grande repercussão. Naquele momento, ela celebrava a chegada de uma sapatilha de ponta da mesma cor que a sua pele. Ingrid é negra e durante 11 anos precisou pintar todas as sapatilhas que havia usado até então. Na rede social, ela comemorou: “É uma sensação de dever cumprido, de revolução feita, viva a diversidade no mundo da dança. E que avanço, viu, demorou mas chegou!”

Demorou para ela, integrante do Dance Theatre do Harlem, em Nova York, então imagine, no Brasil, como está esse avanço. A passos lentos, ainda. Mas sempre existiram e ainda existem pessoas lutando por mais conquistas como essa.

Janete Cristina da Silva é uma delas. Na infância, começou a fazer aulas de balé clássico na Casa da Cultura de Araruna (PR), onde morava com a família. Continuou durante dois anos, quando a professora saiu e as aulas acabaram. Com muito esforço financeiro da família, ela foi para uma academia particular, que tinha uma vertente mais profissional. Foi aí, com apenas 8 anos, que Janete começou a encontrar as primeiras restrições.

Janete Cristina da Silva, mestranda da UEM e professora de balé no Instituto Amafil de Responsabilidade Social

Primeiro, a dificuldade de fazer coque, depois, as roupas, pensadas para corpos mais magros, diferente do perfil arredondado do corpo negro, como ela mesma descreve. As vestimentas, meias e sapatilhas, teoricamente criadas como continuação do corpo do dançarino, eram no tom da pele branca.

“Eu estava totalmente destoada ocupando aquele espaço, mas eu tinha que me adaptar com isso e me contentar com o pouco que o balé clássico podia me dar. Se eu quisesse estar ali, eu teria que driblar esse prestígio cultural, enraizado dentro do balé clássico”, declara a bailarina.

Hoje, com 32 anos, ela consegue analisar melhor a situação e, com certeza, enfrentaria situações como as que enfrentou na infância. Mas na época, com os pais sofrendo do mesmo preconceito há anos, em todos os meios e situações, Janete e os irmãos foram educados a desconsiderar, apesar da orientação para sempre serem firmes e determinados nos objetivos que escolhiam. Quando a pequena bailarina contava algo que havia acontecido nas aulas, Dona Marlene, sua mãe, dizia: “Não está legal? Não está dançando? Você não gosta de fazer balé? Então desconsidera, não vamos complicar.” 

Os pais preferiam enfrentar todos os sofrimentos causados pelo preconceito, evitando que os filhos sentissem essa dor. Nas aulas escolares e nas aulas de dança, lá estava a Dona Marlene, sempre de olho, analisando de longe. Janete, inclusive, lembra de situações em que viu a mãe conversando, às vezes discutindo, com professores e diretores, na tentativa de que ela e o irmão enfrentassem os ambientes e circunstâncias hostis sem preocupações ou percepção de preconceitos.

Mas mesmo com Dona Marlene fazendo o máximo que podia para que a filha fizesse parte desse contexto, Janete sentia a segregação. 

🎧  Janete relata algumas situações de preconceito que passou durante sua passagem pelo mundo do balé clássico na infância

Atualmente, Janete dá aula de expressão corporal e balé clássico para crianças, no Instituto Amafil de Responsabilidade Social, no distrito de São Lourenço, em Cianorte, vizinho a Araruna, onde ainda mora, com o filho e o marido. Ali, ela faz as primeiras transformações no mundo do balé. Para as alunas negras, ela serve de exemplo e referência; para as brancas, ajuda a desnaturalizar a ideia da professora branca com os vestidos do mesmo tom de pele.

Lutando e buscando por mudanças externas, ela agora está compreendendo melhor as mudanças interiores, subjetivas, enquanto faz pesquisas para o mestrado, no Programa de Pós-Graduação em Educação Física, um programa associado entre a Universidade Estadual de Maringá (UEM) e a Universidade Estadual de Londrina (UEL).

Physical Cultural Studies (PCS) ou Estudos Culturais Físicos

Ao entrar para o grupo de pesquisa da UEM Corpo, Cultura e Ludicidade, coordenado pela professora e pesquisadora Larissa Michelle Lara, Janete conheceu os Estudos Culturais Físicos, tradução de Physical Cultural Studies (PCS), que realiza estudos em um campo da Educação Física chamado subárea sociocultural e pedagógica, fazendo interlocução com as ciências humanas e sociais.

O PCS tem sido objeto de estudo no grupo desde que Larissa realizou um estágio pós-doutoral na Universidade de Bath, no Reino Unido, e conheceu melhor sobre o assunto, na tentativa de alavancar as pesquisas dessa área. 

O grupo se propõe, a partir de então, a debater questões étnicas, questões de corpo, diversidade, gênero, cultura popular, e como essas relações de poder interferem na organização desses temas na sociedade. Eles também fazem crítica social, mas entendem que democracia, liberdade e emancipação são constitutivas do ser humano. Larissa declara que, no grupo, prevalece o respeito às diferenças acima de tudo.

No mestrado, Janete tem como objetivo analisar as questões raciais que permeiam o balé clássico, levando em consideração as relações de poder, a partir dos marcadores sociais de raça e gênero. Por meio de entrevistas com bailarinas negras que atuam no cenário nacional, ela buscará saber como essas questões se dão no cenário do balé clássico.

Para ela, o PCS trouxe a pesquisa do corpo nas suas diversas manifestações, dentro de um contexto histórico, social e na diversidade de expressão: gênero, raça e classe. Enquanto pesquisadora, com os Estudos Culturais Físicos, ela pode levar sua potência, sua identidade, sua expressão e sua perspectiva para a pesquisa.

O enfrentamento e a tentativa de desnaturalizar todos esses desafios não serão mais fáceis que a passagem que ela teve no balé quando criança. Possivelmente, será pior. Mas essa é a contribuição que ela pretende deixar não só no mestrado, mas no dia a dia, quando precisa conversar com cada uma das crianças de suas aulas de balé e lembrar o quanto são lindas, com cabelos lindos, e que devem se aceitar como são.

Depois de escutar depoimentos como: “prof, a colega não queria pegar na minha mão porque eu sou preta”, ela quer fazer com que elas se olhem no espelho e vejam exatamente a pessoa que gostariam de ser.

“Eu passei por tudo isso, mas existem mais pessoas, mais meninas vindo, que vão passar por essas mesmas situações. Então, como a gente vai lidar com tudo isso? Como nós vamos construir caminhos para que elas se sintam mais confortáveis nos diversos meios sociais”, questiona Janete.

Ela sabe que a luta não é fácil e que estamos mais de 300 anos atrasados, mas vai continuar correndo atrás e trabalhando na mudança de perspectivas em relação ao corpo negro dentro da paleta de cores do balé clássico.

O conteúdo desta página foi produzido por

Texto: Rafael Donadio
Degravação da entrevista: Karoline Yasmin, Rafael Donadio e Valéria Quaglio da Silva
Edição de áudio: Rafael Donadio
Roteiro de vídeo: Karoline Yasmin e Rafael Donadio
Edição de vídeo: Karoline Yasmin e Rafael Donadio
Supervisão: Ana Paula Machado Velho
Arte: Murilo Mokwa
Supervisão de Arte: Thiago Franklin Lucena
Edição Digital: Gutembergue Junior


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