Liberação de fármacos: tratamento de saúde customizado

Tecnologia permite planejar a dose e a administração de medicamentos para atender à necessidade de cada paciente, de forma personalizada

Quem já não reclamou de ter comprado uma caixa de remédio inteira e só ter usado a metade do conteúdo? Nesse caso, jogou dinheiro no lixo, né? Às vezes, também, nos confundimos com os horários de tomar o medicamento. Temos que acordar de madrugada para colocar um comprimido pra dentro. Um aborrecimento! Nem imaginamos que tem cientistas por aí pensando nestes desconfortos… mas tem!

Pasmem, mas os farmacêuticos estão se unindo com especialistas de diferentes áreas, Engenharias, Química, Eletrônica, Tecnologia de Informação, Biologia, com o objetivo de possibilitar ao médico e a outros profissionais de saúde oferecerem à gente a dose certinha do remédio que precisamos e no formato que nos é mais adequado… comprimido, gel, líquido. E mais: alguns deles são inseridos no nosso corpo e vão sendo absorvidos aos pouquinhos…  sem que a gente precise ficar ingerindo um, dois, três comprimidos ou cápsulas por dia.

Isso já é realidade! Existem tecnologias que transformam os medicamentos em estruturas que podem ser aplicadas em diferentes partes do nosso corpo e vão liberando de forma mais lenta ou mais rápida o princípio ativo do jeitinho que o tratamento for mais eficiente, seguro, efetivo e tranquilo para o paciente, na visão do médico.

Não sabe o que é princípio ativo, espere que já te explicamos. Nossa fonte é a farmacêutica Débora Sant’ Ana, nossa consultora para assuntos da saúde.

🎧 Definição de princípio ativo

Além da professora Débora, quem contou as novidades da área de delivery (entrega, em inglês) de fármacos para o C² foi o professor Marcos Luciano Bruschi, da Universidade Estadual de Maringá (UEM). Ele se formou em Farmácia, na UEM, fez mestrado em Ciências Farmacêuticas, na Faculdade de Ciências Farmacêuticas de Araraquara – Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (FCFAR/UNESP), e doutorado em Ciências Farmacêuticas, pela Faculdade de Ciências Farmacêuticas de Ribeirão Preto-Universidade de São Paulo (FCFRP/USP). Tem mais: é pós-doutor em Farmacotecnia, pela School of Pharmacy-Queen’s University of Belfast, que fica na Irlanda do Norte, Reino Unido.

Junto com mestrandos e doutorandos do Programa de Pós-Graduação em Ciências Farmacêuticas da UEM, atua no Laboratório de Pesquisa e Desenvolvimento de Sistemas de Liberação de Fármacos (LABSLiF), desenvolvendo sistemas de liberação modificada de fármacos, que utilizam diferentes estratégias e tecnologias, como: biomateriais, nanotecnologia, bioadesivos  e produtos de origem natural ou sintética; isto é, “construídos” em laboratórios.

A vida de Marcos Luciano na pesquisa começou na iniciação científica, avaliando a potencialidade de substâncias naturais como medicamentos, uma das áreas de atuação da UEM no cenário da Farmácia. Um dos compostos com os quais se envolveu no laboratório foi a própolis, em parceria com as professoras Selma Lucy Franco e Lucimara Pontara.

Essa investigação ganhou corpo com um grande trabalho no doutorado. O título da tese explica tudo: “Desenvolvimento e caracterização de sistemas de liberação de própolis intrabolsa periodontal”, defendida em 2006, sob a orientação de Elza Helena Guimarães Lara.

Não se assuste, vou explicar melhor. Em resumo, o trabalho aponta que o efeito de certos medicamentos pode ser potencializado por meio do desenvolvimento de novos sistemas (ou verdadeiras plataformas) de liberação destas substâncias ativas no nosso organismo.

“São estratégias nanotecnológicas, bioadesivas e materiais que respondem ao ambiente. Juntas, elas possibilitam que o medicamento possa ficar grudado, em contato íntimo com o local ou tecido de absorção, por exemplo, na nossa pele e mucosas, liberando o princípio ativo de forma controlada. Com isso, podem aumentar a disponibilidade, ou seja, a presença dele no local, além da absorção e da biodisponibilidade (veja definição no fim do texto), oferecendo mais eficiência, segurança e conforto ao tratamento”, explica o professor da UEM.

A tese envolveu o estudo da própolis. O termo é derivado do grego, significando em defesa (pro) da cidade (polis). Trata-se de um forte adesivo, uma espécie de gomo-resina usada pelas abelhas para selar frestas em suas colmeias,  paredes internas e proteger a entrada contra intrusos.

Quer saber mais detalhes sobre essa substância que é utilizada em várias áreas? Assista ao vídeo da professora Lucimar Pontara. Ela é professora do Programa de Pós-Graduação em Agroecologia – Mestrado Profissional e atua na área de Agroecologia e Produtos Orgânicos.

Segundo o professor Bruschi, “esse composto possibilita uma grande  variedade  de  atividades biológicas no organismo, benéficas para a saúde humana,  como:  atividade  antioxidante,  anti-inflamatória,  antitumoral,  antimicrobiana e capacidade de inibir enzimas. Além disso, a própolis é difícil  de  ser  removida  da  pele  humana,  uma  vez  que  ela  interage  fortemente  com  os  óleos  e  proteínas  da  pele.  É  dura  e  quebradiça  quando  fria,  mas  macia  e  maleável quando aquecida. Assim, temos obtido sucesso no desenvolvimento de preparações para a prevenção e o tratamento de doenças”.

Própolis e odontologia

Um dos focos da ação da própolis que está na mira do professor são os problemas periodontais: inflamações e infecções que afetam as estruturas de suporte dos nossos dentes e que resultam na formação de bolsas entre a gengiva e o dente. Geralmente, causam retração gengival e a formação de um ambiente ideal para o crescimento de micro-organismos, podendo progredir e causar a queda de dentes.

O tratamento da periodontite é feito pela remoção dos micro-organismos responsáveis pela infecção e a utilização de antimicrobianos ou anti-inflamatórios. Neste conjunto, está a própolis. Segundo Bruschi, há inúmeros estudos comprovando a atividade dela no tratamento das doenças periodontais.

Os estudos falam de bochechos, irrigações e jatos pulsáteis. Porém, estas alternativas não penetram além de 1 a 2 mm  abaixo da margem gengival. Para resolver esse impasse, alguns odontólogos indicam a administração de  soluções  de  agentes  antibacterianos  diretamente  no  interior  da  bolsa  periodontal,  utilizando  dispositivos  adequados. Mas, quando os agentes são administrados em solução (um líquido com mistura de muita água), é necessário realizar administrações frequentes para manter a concentração de própolis adequada na bolsa periodontal. Isso quer dizer que é preciso estar sempre preocupado com as tarefas necessárias ao tratamento. Se o paciente não for disciplinado, fica complicado assegurar a eficácia dele.

Desta forma, a técnica proposta pelo professor Marcos vem resolver esta e outras questões terapêuticas complicadas. Por exemplo, a utilização de  antibióticos  pode  ser  de  grande  valor  para  o  tratamento  de  certos tipos de periodontite graves. No entanto, esta alternativa não pode ser utilizada por um  longo  período  de  tempo, porque tem muitos  efeitos  colaterais  indesejáveis: náusea,  vômito,  diarreia,  gastrite,  úlceras,  outros transtornos digestivos, alergias e desenvolvimento de resistência pelos microrganismos em pacientes com doença severa. 

Pensando em todos esses problemas, os farmacêuticos têm dado atenção ao desenvolvimento de sistemas de liberação de fármaco intrabolsa periodontal. Em laboratório ou tomando emprestado elementos da natureza, os cientistas vêm desenvolvendo polímeros ou misturas poliméricas, estruturas que são “organizadas” para transportar os medicamentos. Sim, pode pensar naquele motoqueiro que traz para sua casa o pedido correto que fez ao seu restaurante preferido.

“Com o aprimoramento destes polímeros, conseguimos sofisticar as características deles, dando, por exemplo, viscosidade ou consistência, o que facilita a acomodação do medicamento no local do organismo em que ele precisa atuar, e contribui, ainda, com a melhor absorção do fármaco pelo organismo do paciente”, detalha o farmacêutico, que tem um livro publicado com esse tema Strategies to Modify the Drug Release from Pharmaceutical Systems.

O professor Marcos Bruschi, da UEM (Arquivo pessoal)
O professor Marcos Bruschi, da UEM (Arquivo pessoal)

No caso da aplicação da própolis no tratamento das doenças da gengiva e do periodonto, é inserido um dispositivo de liberação da substância na bolsa periodontal, um reservatório natural, que “permite a bioadesão do carreador polimérico e a liberação do agente terapêutico no local a ser tratado em uma quantidade adequada, por um período estabelecido de tempo”, resume o farmacêutico da UEM. 

Outras áreas

O grupo de pesquisa do professor Bruschi não parou na atuação para a área odontológica. Um número crescente de sistemas biotecnológicos têm sido desenvolvidos com o  objetivo  de  alcançar  uma  concentração  adequada e prolongada  de  fármacos em diferentes tipos de tratamento, para diferentes doenças e que tem, como local de entrada, inúmeras partes do corpo humano.

Um dos artigos publicados pelo professor Marcos mostra estudos realizados na cavidade mucosa vaginal. Segundo os resultados publicados neste artigo, esse é um local viável e seguro para “entregar” princípios ativos e altamente dinâmico no que diz respeito à absorção delas. “Em comparação com outros locais de aplicação da mucosa, a vagina tem vantagens como: queda na incidência e gravidade dos efeitos colaterais gastrointestinais; não apresenta inconvenientes causados pela dor, danos teciduais e risco de infecções que estão associadas a outras rotas utilizadas quando a pessoa ingere um produto; além de ser fácil a autoinserção e a remoção da forma de dosagem”, explica o professor.

O tratamento do câncer também está na mira do grupo de pesquisa. Juntamente com a equipe dos professores Noboru Hioka e Wilker Caeano, do Departamento de Química, da UEM. Os cientistas estão tentando encontrar uma maneira de dar mais eficiência e conforto a uma das formas de tratamento do câncer de cólon, por exemplo.

A proposta é contribuir com a terapia fotodinâmica (PDT), uma técnica que envolve a administração sistêmica; isto é, por meio da administração na corrente sanguínea, mas também local e tópica. A terapia utiliza um agente sensível à luz que age sobre células cancerígenas. Utilizando as técnicas novas de delivery, os pesquisadores estão procurando formas mais humanizadas de levar as substâncias que reagem à luz e têm ação sobre as células do tumor, facilitando o processo de tratamento e com ação menos impactante para o paciente.

“É um tratamento minimamente invasivo com potenciais indicações para uma variedade de doenças, não só para a quimioterapia do câncer, mas para a leishmaniose, infecções bacterianas, psoríase, vitiligo, aterosclerose entre tantas outras”, comemora o doutor Bruschi.

A ideia da equipe do LABSLiF, enfim, é chegar a oferecer ao paciente tratamento customizado. O que isso quer dizer? Segundo o professor, em breve, chegaremos à farmácia e impressoras 2D ou 3D vão  imprimir o medicamento que terá exatamente a quantidade ou a mistura de substâncias que o nosso problema específico necessita. O remédio será exclusivo para uma pessoa, personalizado.

Além da substância que deve entrar no organismo para combater algum mal, o veículo, chamado de plataforma ou carreador, aquele que vai entregar, fazer o delivery do fármaco, também vai contar, porque, cada uma destas tecnologias, vai se adequar a uma necessidade específica.

“Os polímeros que se aderem às mucosas, por exemplo, vão liberar o medicamento no corpo, nas mucosas bucal, vaginal, ocular, nasal etc., de forma específica. Além disso, a partir da temperatura ou da umidade do corpo, o medicamento pode responder de forma a melhorar a permanência no local. Tudo isso vai garantir maior eficácia, segurança e comodidade nos tratamento, e menos transtornos para as pessoas, já que tudo será pensado nas limitações e características de cada uma. Assim, o paciente terá uma maior adesão à terapia”, descreve o professor Bruschi.

Vamos combinar que ninguém quer ficar doente e precisar de tratamento. Mas, pensar que a gente pode, se necessário, ser medicado de forma  mais eficiente e menos complicada é muito bom, né? Nosso muito obrigado àqueles que estudam logística… de fármacos!

Glossário

Biodisponibilidade: indica a velocidade e a extensão de absorção de um princípio ativo em uma forma de dosagem, a partir de sua curva concentração/tempo na circulação sistêmica ou sua excreção na urina.

O conteúdo desta página foi produzido por

Texto: Ana Paula Machado Velho
Roteiro de vídeo: Ana Paula Machado Velho
Edição de vídeo: Thamiris Saito
Supervisão: Ana Paula Machado Velho
Arte: Murilo Mokwa
Supervisão de Arte: Thiago Franklin Lucena
Edição Digital: Gutembergue Junior


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