Isso é lógico: será?

Pesquisadores paranaenses dão novo sentido à expressão

Perguntei para o meu colega de pesquisa na Universidade, o professor Tiago Lucena, como ele havia conseguido adequar uma fotografia que encontramos em um banco de imagens gratuito da internet ao tema de uma reportagem que fizemos, aqui mesmo, para o C2. Ele explicou os passos que percorreu no software que havia utilizado. Não gravei todo o processo na cabeça, de 58 anos, mas aquilo me fez pensar em outro texto que precisava produzir, também para o portal. Esse texto aqui.

Eu não sou tããão antiga assim, mas vivi de forma envolvente um período com muitas transformações e meus estudos, na área da comunicação, me levaram a avaliar as modificações em inúmeros processos de produção de textos, objetos, sistemas, projetos, que se afastam muito da lógica como a concebemos no nosso cotidiano. Quando falamos isso é lógico nem sempre refletimos de forma consciente sobre o tema. A pergunta fica: é lógico mesmo?

Começo por pensar que tipo de operações matemáticas os desenvolvedores de programas de informática usam para realizar operações numéricas gigantescas. Porém, o que mais me intriga é como eles conseguem, a partir de combinações infinitas de 0 e 1, criar o que vemos na World Wide Web, que chamamos de WEB: cores, formas, fotografias etc. Já pensou nisso? Esse “mundo” que imergimos nos bancos, escolas, museus virtuais são simulações de linguagens de programação, compostas por símbolos, números, um monte de sinais. Eles digitam os códigos e nós vemos casas, paisagens etc. Precisamos pensar neste cenário digital que coloca em jogo toda a lógica do cotidiano, porque não se explica mais pela lógica chamada clássica, segundo alguns pesquisadores da área.

É a partir dessa reflexão que mergulho na proposta trazida pelo professor da Universidade Estadual de Maringá (UEM), Evandro Luís Gomes, que é autor do livro “Para Além das Colunas de Hércules, uma História da Paraconsistência: de Heráclito a Newton da Costa”. Em primeiro lugar, ele nos orienta a compreender a raiz do termo ‘paraconsistência’. Ouça o áudio abaixo. 

🎧 O termo paraconsistente

A lógica paraconsistente é uma das lógicas (sim, desde o início do século XX, lógica tem plural!), que põem em questão a lógica chamada clássica. Assim, como muitas outras histórias da cultura, a da lógica também começa na Grécia Antiga. De fato, a lógica é uma das três ciências criadas por Aristóteles, além da biologia e da zoologia. O professor Evandro Luís Gomes explica que essa ciência, desde sua formulação original aristotélica, possui três leis principais:

Os três princípios são parte do que chamamos de lógica clássica e que começou com Aristóteles.  O que não se comenta muito e é foco das reflexões do professor Evandro é que, na verdade, os alicerces do que a gente chama de lógica clássica estão fincados em uma visão de mundo bem diferente. Ela é uma contraposição às ideias de Heráclito, que viveu anos antes de Platão e Aristóteles, e embasou sua filosofia na ideia do conflito, o que, no plano do discurso racional, da linguagem e da lógica, é mais favorável à assimilação da contradição. 

“Heráclito de Éfeso viveu no quinto século antes de cristo. Era grego, mas não morava em Atenas, e sim, em Éfeso, hoje, território da Turquia. Para Heráclito, a transformação que acontece na natureza e o próprio processo vital de nascer, crescer e morrer, o quente e o frio apontam para um mundo não tão certo, exato e o que existe, existe porque dois opostos estão se equilibrando. É uma visão mais dialética e flexível de que os opostos podem conviver. E se os opostos convivem, as coisas são e não são ao mesmo tempo e aí ele vai de encontro ao princípio de não contradição”, explica Evandro Gomes.

Para Heráclito, “a realidade é fruto da tensão dos opostos”, como vida versus morte, saúde versus doença, guerra versus paz. Isso se tornou algo desafiador para os pensadores posteriores a ele, que não acreditavam que as pessoas pudessem sustentar teses contraditórias sobre as coisas. De alguma forma, os pressupostos de Heráclito quebram os preceitos da lógica clássica. Por quê?

“O pensamento de Heráclito funcionou como uma provocação. Heráclito tinha uma teoria de que tudo é movimento, tudo estaria em constante transformação e permite versões. Platão (428-247/8 a.C.) e Aristóteles (384-322 a.C.) se contrapuseram a esse postulado, dialogando com os sofistas, que davam ‘nó em pingo d’água’; isto é, faziam o que era não ser, e o que não era, ser. Como um grande sistematizador e na direção de pensar que a realidade não pode ser um ‘vale tudo’, Aristóteles vai estabelecendo, aos poucos, e em várias obras, suas teorias em sentido contrário ao pensamento de Heráclito”, esclarece o professor da UEM. 

Os filósofos e suas ideias sobre a verdade

Na história da Filosofia ocidental, que tem mais de 2500 anos, essas correntes nunca desapareceram. A influência de Aristóteles é muito grande, mas Heráclito nunca foi esquecido e ele vai sendo retomado ao longo dos séculos. Uma das pessoas que admirou muito e reimpulsionou o pensamento dele foi Georg Hegel (1770-1831). O filósofo alemão, do final do século XVIII e começo do XIX, foi o fundador de uma abordagem na qual também trilha Karl Marx (1818-1883). As marcas do filósofo de Éfeso também estão no materialismo histórico-dialético do marxismo, que descreve a realidade e a própria história é produto da tensão de forças opostas. 

Assim, no século XIX, existe um clima um tanto mais favorável a olhar para as contradições não como algo errado, em teoria, mas algo que talvez faça parte da realidade. Seria um traço da realidade não um absurdo completo, como propõe a lógica aristotélica. Essa retomada encorajou as pessoas a pensarem que as boas descrições da realidade deveriam incluir ferramentas teóricas que fossem capazes de manejar contradições. Isso ganha um marco, no começo do século XX, quando o filósofo russo Nikolai Vasiliev (1880-1940) visualiza, “profeticamente”, que estava próximo um tempo em que a lógica aristotélica não estaria mais aprisionada e que poderia haver outras perspectivas do sentido do que é lógico ou da logicidade.

A abstração matemática 

Vasiliev estava certo. O desenvolvimento científico do século XIX trouxe ao mundo conceitos e técnicas que mudaram a perspectiva de muitas áreas. É uma situação análoga à que ocorre com as artes plásticas, por exemplo, vão se decompor em estilos que não mais retratam a realidade. Isso é aprimorado com a invenção da fotografia, do cinema. Eles são reconstruções da luz no papel e nas telas, pontos que “recompõem” a realidade. Imagina pensar nisso, há 170 anos? Acontece uma revolução na arte em geral, porque ela não precisa mais ser o retrato do visível, ela pode se expressar em outros estilos e linguagens. 

No século XIX, a matemática também aprimora seu processo de abstração. Houve descobertas matemáticas importantes que revolucionaram a forma como essa ciência via a si mesma. A primeira delas foi a emergência da assim chamada geometria não euclidiana. Até essa época, a geometria era extremamente dependente da intuição, era baseada naquilo que as pessoas viam, de alguma forma guiada pela perspectiva dos sentidos. Depois do advento das geometrias não euclidianas, pudemos pensar em geometrias de n dimensões, não só de três ou quatro, ou mesmo quando se trabalha com a geometria de três dimensões,

“Com toda essa marcha da abstração, no final do século XIX, os matemáticos estavam muito preocupados, porque essas novas teorias estavam entrando em conflito umas com as outras. Por isso, eles começaram a se interessar muito por lógica, porque viram que ela começava a ser muito necessária para fornecer para a matemática uma linguagem boa, com regras de dedução claras, para que as teorias fossem refinadas e o rigor matemático garantido. E aí surgem inúmeras inovações, entre elas, a lógica como a gente tem de lá pra cá, a lógica moderna, simbólica ou matemática, desenvolvida a partir das contribuições de diversos autores, especialmente George Boole (1815-1864) e Gottlob Frege (1848-1925). A moderna lógica simbólica permitiu muitos desenvolvimentos teóricos e tecnológicos, que convergiam para a definição de processo computável, proposta por Alan Turing (1912-1954), nos anos 1930, explica o professor da UEM. 

No século XX, começam a surgir lógicas não clássicas, dentre elas as lógicas paraconsistentes. Nesse contexto, a matemática, assim como outras áreas da ciência, se tornou altamente simbólica. É desenvolvido um alfabeto com letras latinas ou de outros alfabetos, com símbolos especiais para as operações lógicas (negação ‘~’, conjunção ‘&’, disjunção ‘v’, implicação ‘’, por exemplo), semelhante ao que existe na aritmética (+, x, =, etc.). O que permite exprimir as operações lógicas com grande precisão. 

Mas a lógica paraconsistente se concretiza, definitivamente, nos anos 1960. E, nos últimos 20 anos, se estabelece, como muitas outras ferramentas lógicas, com a explosão da computação, da robótica, os Big Data, entre outros, consagrando a área como uma metodologia muito importante para o tratamento de dados, que conta com infinitas ferramentas, aplicativos e linguagens mais flexíveis. 

“Tudo que está dentro dos nossos smartphones resulta diretamente dos avanços da lógica nos últimos 170 anos. Tudo funciona a partir deles, desde a arquitetura dos circuitos às suas contrapartes algébricas, que são muito bonitas, muito simples, e que funcionam muito bem. Daqui a pouco, vamos conviver com robôs mais inteligentes, capazes de ter algoritmos que manejam melhor informações ditas vagas, que não são nem verdadeiras nem falsas, estão ali no meio. A partir do problema que surge para ser resolvido, o sistema vai dar sentido aos dados, de forma a colocar em evidência a ‘melhor’ solução para a operação. Isso aponta para ferramentas mais inteligentes do que as já existentes hoje, embora não se possa dizer que a tecnologia que a gente possui atualmente seja inteligente, porque elas estão operando com algoritmos muito bem definidos, sem essas possibilidades de ‘escolha’ pelo sistema”, destaca Gomes.

Além da matemática

As transformações não ocorrem só nas ciências exatas. As lógicas paraconsistentes, que são capazes de manejar com dados e informações contraditórias, passaram a ser usadas para explicar e estudar a emergência de contradições em outras áreas. Segundo Evandro Gomes, a análise da contradição é fundamental em questões ligadas à fundamentação da crença. A lógica tem o poder de demonstrar as contradições a uma pessoa e provocar uma mudança de opinião. As contradições podem ter efeito de transformar a adesão a certas crenças.

“Claro que as teorias, os discursos tendem a ter certa lógica, mas há outros componentes e, particularmente, na política e em certos setores da vida, entram em cena os elementos afetivos, que podem ser altamente distorcidos, fazendo com que o pensamento se torne muito seletivo, ora dando muito valor para um aspecto, ora dando destaque a outro. Esse processo seletivo também vai complicando as nossas relações, porque as pessoas têm afetos, têm preferências, algumas das quais não são exatamente racionais. A psicanálise explica que as pessoas projetam em seus ídolos alguns aspectos e já não veem mais o ídolo, a pessoa, nem enxergando direito a situação, criando uma visão distorcida do sujeito. Então, entra em cena a análise lógica das coisas, que é uma das análises possíveis de se fazer. Assim, no caso paraconsistente, nós conseguimos analisar teorias que podem conter contradições, que são teorias paraconsistentes, e, nesses casos, como a lógica é diversa da lógica clássica, a presença de contradições que não implica a destruição da teoria”, arremata o docente do Departamento de Filosofia da UEM. 

O professor ainda aponta que há outros usos da lógica paraconsistente, como por exemplo, em teologia. É uma frente que está sendo muito estudada recentemente, em teologia natural, que discute, por exemplo, inconsistências que surgem nas doutrinas religiosas. 

Vimos, assim, que as verdades do mundo, muitas vezes, precisam de uma reflexão. Especialmente, em momentos em que vivemos tantas interferências, não só no que diz respeito a questões sociais, econômicas, científicas… Vemos que a tecnologia é um aspecto que influencia nosso destino e nossas formas de vida. 

Não estou falando da minha surpresa com o tratamento da foto feita pelo professor Tiago, que comentei no início desta reportagem. Refiro-me a algo muito maior, que pode influenciar o mundo de forma muito mais efetiva e que vem sendo foco de estudos e proposições de pessoas imortais como Heráclito, Platão, Aristóteles. Estou falando de pensamentos que organizam a lógica, o pensamento e a cultura em nossa civilização. 

E pasme!!! Toda essa história da lógica paraconsistente tem um pezinho no Brasil, no Paraná para sermos mais específicos.

O conteúdo desta página foi produzido por

Texto: Ana Paula Machado Velho
Degravação da entrevista: Maria Eduarda de Souza Oliveira e Milena Massako Ito
Edição de áudio: Ana Paula Machado Velho
Roteiro de vídeo: Ana Paula Machado Velho
Edição de vídeo: Thamiris Saito
Supervisão: Ana Paula Machado Velho
Arte: Murilo Mokwa
Supervisão de Arte: Thiago Franklin Lucena
Edição Digital: Gutembergue Junior

A pesquisa que mencionamos contribui para os seguintes ODS:


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