Verspersaurus: a história que começou em uma gaveta

Chamado de Vespersaurus paranaensis, o dinossauro é o primeiro e, até agora, o único descoberto no Paraná

Em Cruzeiro do Oeste, interior do Paraná, no caminho para o campo, Alexandre e João Dobruski, pai e filho, sempre passavam pela mesma estrada. No entanto, não era uma simples travessia, já que, a cada dia, os agricultores observavam diferentes fragmentos esbranquiçados espalhados pelo chão. A cidade do noroeste paranaense é bem úmida por conta das chuvas e, para drenar a grande quantidade de água, eram feitas valas. Na medida em que elas eram abertas na beira das estradas do campo, os fragmentos apareciam mais e mais.

Sítio Paleontológico de Cruzeiro do Oeste visto de cima

Isso começou a chamar atenção dos agricultores, que, durante a abertura de algumas valas para o escoamento das águas da chuva, acharam um bloco com muitos ossos. De cara, já pensaram que poderiam ser fósseis, até porque também haviam sido encontradas pegadas na mesma área rural, aumentando mais a curiosidade a respeito da origem do material. Embora não tivessem conhecimento especializado sobre o assunto, o interesse era muito grande. Acabaram virando motivo de piada entre os amigos, que diziam: “Isso aí é osso de galinha! Vocês estão malucos!”. Mas nada os fez desistir de conhecer a verdade. 

Alexandre tinha sobrinhos que estudavam na Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG), também no Paraná, e acreditava que, se eles levassem o tal bloco encontrado no barranco para o câmpus, descobririam o que realmente era. Então, um dia em que os sobrinhos foram a Cruzeiro do Oeste, Alexandre entregou o achado para eles. Os meninos levaram para a Universidade. Porém, o material não pareceu relevante para uma análise mais aprofundada e foi guardado no Setor de Geociências como se fosse uma amostra, mas não como um material de pesquisa.

Achou que tudo estava perdido e aquela descoberta havia ficado para trás? Não se apresse. Em 2012 (quase 40 anos após o ocorrido), o geólogo Paulo Cesar Manzig, conseguiu uma verba para levar adiante o projeto de um livro de divulgação científica sobre museus de paleontologia do sul do Brasil. Assim, saiu rodando em viagem por essa região, indo para vários museus e tirando fotografias de diferentes fósseis. 

Quando ele esteve na UEPG, registrou mais uma porção de  fósseis, até que foi parar em uma sala onde eles eram guardados em gavetas. Só que era necessária a autorização do responsável pelo local para fotografar dentro de cada uma delas. O servidor da universidade acabou permitindo, desde que os fósseis não saíssem de lá. E, então, o inesperado aconteceu! Paulo abriu a gaveta em que o bloco dos Dobruski foi guardado, na década de 70. Ao olhar a etiqueta, observou que a única coisa escrita era “Cruzeiro do Oeste”. O geólogo analisou o material mais a fundo e identificou que eram ossos de pterossauro. 

Com a curiosidade despertada, ele correu para encontrar a cidade de Cruzeiro do Oeste no mapa e notou que não tinha nenhuma publicação sobre pterossauros naquela região. A primeira reação de Paulo foi pensar que a etiqueta estava errada e que, na verdade, era um fóssil que veio da Argentina ou do Araripe, no Nordeste, não de Cruzeiro do Oeste. Com essa dúvida na cabeça, ele chamou outro geólogo, os dois começaram a analisar o achado e constataram que vinha mesmo de Cruzeiro do Oeste, já que tinha Arenito Caiuá em sua composição, o solo típico daquele lugar. No mesmo momento, os dois abandonam o que estavam fazendo e foram buscar mais detalhes sobre o local em que o fóssil foi achado, pois encontrar um pterossauro no Paraná era algo inédito e fora de cogitação naquele período. 

Mala e cuia – Os geólogos partiram, então, para Cruzeiro do Oeste, para conversar com a prefeitura. Eles achavam que aquela rocha cheia de fósseis era de umas das pedreiras da região, mas descobriram que lá não havia pedreira. Conversando sobre a situação na prefeitura, coincidentemente, o filho de João Dobruski trabalhava lá como engenheiro e acabou ouvindo a conversa. Como essa história era contada entre seus familiares, ele foi falar com seu pai sobre o que havia ouvido e, logo, descobriu que a rocha com fóssil era o bloco que o avô, Alexandre, havia mandado para a UEPG. Assim, as coisas se encaixaram perfeitamente e os pesquisadores se encontraram com a família Dobruski. João mostrou o local em que ele e seu pai acharam o fóssil e, de imediato, os professores já perceberam que se tratava de um sítio paleontológico.

Paulo Manzig tinha contato com os pesquisadores da Universidade do Contestado (UNC), em Mafra, município de Santa Catarina. Por esse motivo, a UNC encabeçou, inicialmente, a pesquisa dos pterossauros. Os pesquisadores foram para Cruzeiro do Oeste e montaram uma estrutura de extração bem grande no local, retirando toneladas de rochas com fósseis. Uma parte foi para a Mafra e outra ficou na cidade paranaense. E foi assim que os pterossauros “apareceram” de vez… Então, é possível afirmar que esses fósseis foram descobertos em duas ocasiões. A primeira, no barranco e a segunda dentro de uma gaveta. 

E como Maringá entrou nessa história?

Em 2011, o professor Lucas Cesar Frediani Sant’Ana passou no processo de seleção para atuar na área de geologia e paleontologia, do Departamento de Geografia, da Universidade Estadual de Maringá (UEM). No ano seguinte, em uma de suas aulas, uma aluna chamou a atenção para o fato de terem encontrado fósseis em Cruzeiro do Oeste. “Assim que ela me contou, fui procurar e acessei algumas notícias de 2012, sobre o achado desses fósseis. Nas minhas buscas, eu descobri que a instituição que estava fazendo parte dessas pesquisas era a Universidade do Contestado. Isso me causou muita estranheza, afinal, como que um negócio que está tão próximo da UEM (de Maringá até Cruzeiro do Oeste é, aproximadamente, uma hora e meia de viagem), está sendo pesquisado por um pessoal de Santa Catarina”, conta Lucas Sant’Ana.

Professor Lucas durante a pesquisa no Sítio Paleontológico

O professor conseguiu o contato de um pesquisador que estava participando das descobertas dos fósseis e encaminhou um e-mail, mas não obteve resposta. Porém, em 2014, o pessoal de Cruzeiro do Oeste procurou o geógrafo, pedindo que ele fizesse uma visita ao sítio paleontológico. “Eu fui até lá, conheci o pessoal da prefeitura e foi nesse contato que uma técnica de lá fez um convite para que a UEM assumisse as pesquisas em Cruzeiro do Oeste”, relata Lucas. 

Nesse momento, outros professores de Geografia da Universidade embarcam na pesquisa: Edison Fortes, Marta de Souza, Nelson Gasparetto e Susana Volkmer, na época pesquisadores do Grupo de Estudos Multidisciplinares do Ambiente (GEMA/UEM). Com a equipe formada, a UEM tomou a frente nos trabalhos paleontológicos de Cruzeiro do Oeste.

Em 2015, a UEM foi oficializada como instituição responsável pelas principais pesquisas no sítio paleontológico de Cruzeiro do Oeste, após assinatura de um Convênio com a Prefeitura Municipal do município. Esse procedimento burocrático facilitou muito as coisas. Com ele, os professores da UEM puderam ir a qualquer momento para a cidade, levando alunos de graduação e pós-graduação para fazer pesquisa.


Nesse mesmo período, eles encontraram um bloco de rocha cravejado de fósseis e, diferente da imagem que todos temos da paleontologia, graças aos filmes e outras produções, quando o pesquisador está “batendo martelo”, ele não encontra os fósseis todos bonitinhos e esquematizados igual em Jurassic Park. Muito pelo contrário, “o fóssil é um caos, tudo bagunçado, faltando peças. Você encontra a mandíbula em um lugar, vértebra em outra, ou até mesmo não encontra”, explica o professor Lucas.

Quando os pesquisadores olharam para o novo bloco, já notaram que tinha algo diferente dos outros encontrados no sítio, no caso, do pterossauro, um réptil parente do dinossauro, mas que não é classificado nem chamado de dinossauro. O pterossauro voava, então, o osso dele tinha que ser bem leve, chamado de osso pneumático, que é oco e possui uma densidade bem baixa. Esses outros ossos encontrados no bloco de rocha tinham um espaço dentro, porém, eram muito mais densos e espessos. Então, se fosse um osso de pterossauro, era de um que não voava, dada a estrutura óssea. Por isso, os pesquisadores começaram a desconfiar que poderia ser um fóssil de dinossauro. 


“Nós não tínhamos a expertise para descrever um dinossauro, então, fizemos um convite formal para a Universidade de São Paulo (USP), de Ribeirão Preto, onde está o professor Max Cardoso Langer, e ele topou entrar na pesquisa, trazendo todo seu conhecimento de fotografia e descrição sistemática, que é bem complexa. E aí nós descobrimos o primeiro, e até então o único, dinossauro paranaense, que é o Vespersaurus paranaensis. Foram quatro anos de descrição e discussão, a gente precisou consultar a literatura, para ver se não era nada redundante, e isso é muito importante na ciência, porque você não pode ficar ‘chovendo no molhado’. E, de fato, era uma espécie nova, de uma família que é bem rara, que nós só tínhamos encontrado na Argentina com o Abelisaurus”, explica Lucas.

Confira na animação abaixo como era o Vespersaurus paranaensis de forma mais detalhada:

Essa descoberta inaugura uma nova perspectiva da paleontologia no Paraná. Antes, as pesquisas da área ficavam muito focadas na região de Ponta Grossa. Lá, foram encontrados muitos fósseis de invertebrados, moluscos, conchas e trilobitas (artrópodes da era paleozóica). Já os  terópodes (espécie de dinossauro) começaram a ser encontrados em Cruzeiro do Oeste. “Nós já tivemos o Vespersaurus, dois pterossauros, temos outro réptil que se assemelha a uma iguana moderna, que também foi descoberto lá, e tem mais coisa. É óbvio que todo esse trabalho demanda deslocamento, estadias em hotel, então, nós tivemos que dar uma freada com a pandemia. Mas ainda tem muita coisa para ser descoberta, muitas pesquisas que podem ser desenvolvidas por alunos da iniciação científica, mestrado, doutorado e, talvez, até um pós-doutorado”, comenta o geógrafo.

Mais importante que descobrir esses fósseis é caracterizar como era a vida no passado e fazer correlações. “Temos dois pterossauros e um dinossauro, qual é a relação que existia entre eles? Basicamente, as relações ecológicas eram harmônicas ou desarmônicas? Quem servia de alimento para quem? Começamos a criar uma cadeia alimentar nesse ambiente e, também, entendê-lo. Entre 90 a 60 milhões de anos, nós tínhamos um ambiente desértico que não era tão propício assim à vida. Como esses seres viviam e existiam em abundância”, indaga o professor Lucas, que, hoje, atua no Museu de Geologia e Paleontologia da UEM.

Lucas Sant’Ana conta que os pesquisadores já possuem mais alguns indícios de como era a região do Paraná por conta de algumas características de ossos diferentes que foram encontrados, mas alerta que eles ainda precisam analisar todas essas informações. Por isso, ele explica a importância de ter muito cuidado antes de publicar oficialmente novas evidências. 

O professor Lucas Sant’Ana conta quais são os passos que precisam ser cumpridos para praticar paleontologia no Brasil, de acordo com as leis

O que a descoberta trouxe de atenção para Cruzeiro do Oeste?

O fóssil é um patrimônio científico, histórico e cultural de um povo. Nesse caso, trata-se de um fóssil que pertence a Cruzeiro do Oeste. E o que ele diz a respeito de lá? Tudo. Essencialmente, porque as características geográficas da cidade vêm de todas as coisas que ocorreram no passado, contam a vida daquela região. O professor Lucas afirma que a população local precisa reconhecer isso e reforça a importância de preservar um patrimônio como aquele. 

“O próprio Dobruski contava que, quando chovia, a estrada ficava branca de tantos ossos e o pessoal passava de carroça e de trator em cima. Pense no tanto de ossos que foram destruídos e perdidos nesse período, devido à falta de conhecimento sobre o assunto. Por isso, entendo o porquê da legislação brasileira ser tão rígida nessa área. Se você perde o fóssil, não tem como voltar atrás, desfazer. Então, esse cuidado é muito importante”, comenta o docente. 

Por meio do Grupo de Estudos Multidisciplinares do Ambiente (Gema), a UEM é uma das instituições que contribuíram com a elaboração do Plano de Geoconservação do Sítio Paleontológico de Cruzeiro do Oeste. Atualmente, o grupo não faz mais parte das pesquisas realizadas no sítio, mas o coordenador geral do Gema, o professor Edison Fortes, explica como o Plano de Geoconservação funciona e qual sua importância.

🎧 O professor Edison Fortes explica como funciona o Plano de Geoconservação elaborado para o Sítio Paleontológico de Cruzeiro do Oeste

Por conta dessa descoberta histórica, a prefeitura de Cruzeiro do Oeste está atenta e são incentivadas visitas à cidade, colaborando com o desenvolvimento do turismo, que é bastante importante para lugares que possuem fósseis. Em 2019, foi criado o Museu Paleontológico de Cruzeiro do Oeste, que reúne e expõe os achados do município. “A questão econômica é importante e acredito que é conciliável com a paleontologia. A paleontologia ganha nome, dá projeção para a cidade, uma importância científica e a  cidade ainda ganha com os turistas”, ressalta Lucas Sant’Ana.

Como se tornar paleontólogo?

No Brasil, não há curso de Paleontologia. Na verdade, são poucos os países que possuem graduação específica na área. Por aqui, é indicado cursar: Geografia, Ciências Biológicas, Geologia ou, até mesmo, História, campos que mais se aproximam da Paleontologia. Em seguida, o cientista precisa se especializar. Há várias oportunidades de mergulhar na área, fazendo pesquisa, mestrado e doutorado.

O conteúdo desta página foi produzido por

Texto: Maria Eduarda de Souza Oliveira e Milena Massako Ito
Degravação da entrevista: Maria Eduarda de Souza Oliveira, Milena Massako Ito e Thamiris Rayane Shimano Saito
Edição de texto e supervisão: Ana Paula Machado Velho
Edição de áudio: Milena Massako Ito
Edição de vídeo: Thamiris Rayane Shimano Saito
Ilustrações: John Zegobia
Fotos: ASC – UEM

A pesquisa que mencionamos contribui para os seguintes ODS:


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