Além de Mulan e Aladdin: uma crítica

Trabalho de João Paulo Baliscei, “PROVOQUE”, sugere novas representações de gênero ao problematizar e questionar estereótipos de personagens de animação

Em Maringá, enquanto almoçava com o marido em um restaurante, o professor e pesquisador da Universidade Estadual de Maringá (UEM), João Paulo Baliscei, foi surpreendido por uma criança de 7 ou 8 anos de idade, que, desgarrada de seus pais, surgiu, repentinamente, ao lado da mesa, na tentativa de assustar o casal. Dirigindo-se a João, o menino falou: “você tem uma barba muito grande”.

O casal achou graça e João deu corda ao garoto, dizendo que, realmente, a barba dele era bem grande, igual à do Papai Noel, e perguntou se ele achava aquilo legal ou estranho. Ao que o menino respondeu: “eu gostei, mas achei estranhas as suas unhas, porque você tem unhas de mulher?” João tinha todas as unhas das mãos pintadas de azul. 

Esse acontecimento pode passar batido para algumas pessoas. Outras podem achar graça na naturalidade e honestidade de uma criança, e nada mais. Mas, para Baliscei, professor do curso de Artes Visuais, da Universidade Estadual de Maringá (UEM), no Paraná, aquela cena é significativa e serviu de exemplo para explicar alguns pontos de seu projeto PROVOQUE. 

Sigla de “Problematizando Visualidades e Questionando Estereótipos”, PROVOQUE foi desenvolvido durante seu doutorado em Educação, “Vilões, Heróis E Coadjuvantes: Um estudo sobre masculinidades, ensino de arte e pedagogias Disney”, realizado na própria UEM e defendido em 2018. Tendo os Estudos Culturais como referencial teórico, o pesquisador desenvolveu um sistema de análise de imagens, a partir dos procedimentos que ele mesmo, como professor e investigador, realiza dentro da própria cabeça ao fazer interpretações de imagens.

O nome foi colocado no imperativo propositalmente. Baliscei explica que o objetivo é provocar e levar as pessoas ao questionamento. O sistema crítico foi construído com cinco procedimentos (ou etapas): flertando, percebendo, estranhando, dialogando e compartilhando. Cada uma dessas etapas convida as pessoas a assumirem e a lançarem olhares específicos sobre as imagens. 

“O meu objetivo com a sistematização desses procedimentos é compartilhar com meus alunos, alunas, orientandos, orientandas e colegas de trabalho, uma ferramenta que pode, quem sabe, auxiliá-los nesses exercícios que eu chamo de investigação visual crítica e inventiva”, explica João. 

Ao se debruçar sobre o assunto, ele percebeu que já existiam trabalhos acadêmicos que analisavam a relação entre imagens da Disney e feminilidade, mas não havia esse tipo de pesquisa em relação à masculinidade. Como os desenhos da Disney ensinam às meninas, desde muito cedo, a assumirem comportamentos que, socialmente, serão valorizados quando mulheres adultas, o pesquisador começou a se perguntar se não seria possível e provável que esses mesmos desenhos oportunizem modelos, referências, estereótipos com os quais os meninos devem ou precisam se identificar.

Um fator mais pessoal também teve muita importância na realização do PROVOQUE. Hoje, ao se apresentar como homem gay, João Paulo relembra que, na infância, nos anos 1990, ele foi “ensinado” a ver o próprio corpo, a própria sexualidade, gênero e expressão de gênero a partir de vários estereótipos.

Na infância, para João, era difícil se identificar como uma pessoa gay. “Porque, visualmente falando, ser gay era algo muito negativo, era algo muito imoral, incorreto, vergonhoso. E de onde eu aprendi isso?” Ele pergunta e ele mesmo responde: “lógico que eu aprendi com a igreja e com a escola, mas, sobretudo, a partir das imagens, daquilo que, teoricamente, eu chamo de Cultura Visual”.

Andrey Cruz é graduando do curso de Comunicação e Multimeios da UEM e orientando de Baliscei. Os dois estão envolvidos no trabalho que analisa a representação masculina negra na mídia, a partir do personagem Eric Effiong, da série Sex Education, da Netflix. Segundo Andrey, “a mídia, ao mesmo tempo que pode denunciar as mazelas da sociedade, também ensina como devemos ser dentro dela.”

Assim, a partir da própria vivência e dificuldade de representatividade que teve durante a infância, nos anos 1990, e os questionamentos que levantou sobre estereótipos retratados em diversas imagens, Baliscei resolveu criar o PROVOQUE. Na construção desse novo método, ele trabalhou com dois desenhos da Disney: Aladdin (1992) e Mulan (1998), analisando dois vilões, dois heróis e 16 coadjuvantes, todos personagens masculinos. Pois bem, mas como são feitas as análises dentro desse sistema específico, com cinco etapas?

Flertando. Como a própria palavra sugere, a primeira etapa é como uma paquera do intérprete com a imagem, um interesse ou uma paixão. É o momento que o pesquisador propõe uma aproximação descompromissada ou sem obrigações previamente estabelecidas.

Percebendo. Esse é o momento em que as imagens escolhidas passam a ter um significado mais profundo do que uma simples paquera. É o momento em que as imagens são expostas, descritas e apresentadas visual e verbalmente. Essa segunda etapa favorece os exercícios de investigações visuais críticas e inventivas, já que, enquanto socializa as imagens selecionadas, as descreve e orienta os olhares de forma a perceber os elementos que serão problematizados e fundamentados nas próximas etapas. 

Estranhando. Etapa em que o investigador visual deve realmente se estranhar com a imagem, lançar questionamentos, provocar e problematizar as imagens investigadas. 

Dialogando. Depois do estranhamento, deve-se discutir e ressignificar as imagens. Para essa quarta etapa, é sugerido que, por meio de exercícios de pesquisa, o intérprete confronte os estereótipos identificados nas imagens com teorias, conceitos, dados, livros, documentos, reportagens, artigos, dissertações, teses ou outras produções que discutam sobre a temática e que possibilitem evidenciar as relações de poder que atravessam a produção visual.

Compartilhando. Por último, vale a máxima popular de que apenas quando ensinamos um conteúdo adquirido é que realmente aprendemos. Portanto, nessa quinta etapa, devemos compartilhar o que foi analisado e redesenhar a imagem escolhida com seus novos significados. Na tese, João Paulo apresenta os desenhos ressignificados que produziu.

PROVOQUE: Problematizando Visualidades e Questionando Estereótipos

Etapas Verbos/Ações Síntese Perguntas
FlertandoBuscar
Escolher
Reunir
Justificar
1) Compor o corpus de
análise
2) Expor os critérios
adotados para a seleção
É interessante e necessário
analisar quais imagens?
Por quê?
PercebendoMostrar
Narrar
Analisar
Interpretar
1) Apresentar visualmente
e verbalmente as imagens
selecionadas
2) Chamar atenção para
representações específicas,
preparando-as para a análise
Quais imagens foram
selecionadas? Como
elas são compostas? Que
histórias contam?
EstranhandoQuestionar
Incomodar (-se)
Suspeitar
Denunciar
1) Formular
2) Lançar
perguntas que problematizem
os estereótipos oferecidos
pelas/nas imagens
A quem essas imagens
(des)favorecem? Como
representam a mim e ao/à
outro/a?
DialogandoPesquisar
Desestabilizar
Comparar
Relacionar
1) Promover diálogos,
por exemplo, com textos
científicos e com outras
imagens
Como a produção
científica analisa esse
tema? Quais imagens são
diferentes daquelas que
compõem o corpus de
análise?
CompartilhandoDivulgar
Oferecer
Trocar
Produzir
1) Socializar as vivências
proporcionadas pelo
PROVOQUE
Como é possível divulgar
os conhecimentos
construídos no
PROVOQUE?

Agora, é possível que alguém esteja se perguntando como aquele menino do restaurante do começo do texto se relaciona com o projeto de João Paulo Baliscei. Pois bem, ninguém melhor que o próprio criador para nos dizer. “Alguém ensinou a essa criança de 7 ou 8 anos que unha pintada é coisa de mulher. Então, ela atravessou o restaurante e, diante de uma pessoa que ela não conhece, valorizou a barba, um marcador de masculinidade, mas antes de perguntar o meu nome, censurou a maneira como eu pinto as minhas unhas. E não estou colocando a criança como um agressor e eu como vítima. Eu coloco essa criança como vítima. Olha o que foi ensinado, [e ensinado de tal forma que] ela atravessou o restaurante porque algo a incomodou muito, e esse ‘algo’ foram as minhas unhas.”

Assim como o João de 8 anos de idade, a criança do restaurante, provavelmente, é bombardeada de informações do colégio, da igreja e de imagens da mídia, quadrinhos e tantos outros meios, sugestionando e, dessa forma, ensinando, que existe apenas uma forma de representação feminina e apenas uma forma de representação masculina. E nesses estereótipos, quem pinta a unha é a mulher. O homem que tem unhas coloridas ou trejeitos femininos é “imoral, incorreto e vergonhoso”. É sempre o vilão.

Esses vilões, personagens representados como pessoas más e diabólicas, geralmente usam saia e joias, mexem muito as mãos e possuem diversas outras particularidades reservadas apenas ao estereótipo feminino, o que, dentro da trama, é motivo de vergonha para eles e piada para os outros personagens. 

Ao analisar o personagem Jafar, de Aladdin, João Paulo questiona o fato dele ser o único homem do desenho com saia, com um véu que emoldura o rosto, cabelos longos e joias. É um personagem construído com analogias a feminilidade, sugestionando que o comportamento dele passa a impressão de uma não heterossexualidade. E como já dito, é o vilão diabólico.

Ao ressignificar a figura de Jafar, João focou principalmente nos movimentos das mãos e nas cores. “Ele é bastante caracterizado pelas mãos dramáticas, então eu desenhei o personagem utilizando cores que, socialmente, são relacionadas ao feminino e trago ele movimentando as mãos de uma maneira orgulhosa e não de uma maneira que proporcione vergonha ou algo do tipo”, explica o artista, sobre uma das reproduções que fez em sua tese.

O estudante Danilo Henrique, de 22 anos, de Campinas (SP), participou como ouvinte de algumas discussões do grupo Artei (Grupo de Pesquisa em Arte, Educação e Imagens), da UEM, coordenado por Baliscei. Ele disse ter sido “uma criança viada” e, assim como aconteceu com João Paulo, Danilo, mesmo não crescendo na década de 1990, teve dificuldade em se identificar como pessoa gay. A sorte é que ele teve a internet, onde encontrou pessoas que eram tão “estranhas” como ele, e também onde encontrou o Artei.

Outra sorte do estudante paulista foi nascer em uma família que ele descreveu como “diferente do que é normal”, pelo fato de seus pais serem pessoas com deficiência (PCD), física e visual, e a irmã ter se reconhecido como lésbica. “Eu tive uma infância muito livre, amava as bonecas da minha irmã e minha mãe sempre falava: ‘deixa ele brincar’. A dificuldade é que na escola eu não podia, né? Eu nunca apanhei, mas já sofri bullying. Já cheguei até a sair de batom e meus pais nunca me impediram”, relata Danilo.

Atualmente, ele levanta questionamentos sobre a binaridade de gênero: “Não sei se já posso definir, mas não me encontro nem lá e nem cá. Nem só homem, nem só mulher. Então, surgiu a questão da não binaridade de gênero, que é quando você está no meio entre o homem e a mulher, e você pode transitar também.”

Mas, apesar da internet e da família acolhedora, no Instagram, Danilo precisa ter uma conta privada para mostrar seus desenhos, fotos e outras artes pela qual consegue se expressar. E não faz isso apenas por causa das pessoas que o julgam, mas também por causa do próprio Instagram, que bane muito dos desenhos dele, mesmo sem nudez ou qualquer conteúdo ofensivo. Na escola, também percebeu que esconder quem realmente era o livrava do bullying, então foi isso que fez durante um bom tempo.

Homem negro, Andrey Cruz acredita que a representação é uma possibilidade de existência. Se ele não se vê representado em algum espaço, provavelmente, crescerá pensando que não pode ocupar esse determinado espaço. “Como muitos meninos pretos, que não se imaginam na frente de uma sala de aula, porque nunca tiveram professores pretos para se identificarem e perceberem que aquele futuro pode ser o futuro deles. Em contrapartida, sempre veem personagens como eles em reportagens, sendo chamados de traficantes e portando 10g de maconha. Como eu consigo me ver futuramente?”, questiona o graduando.

🎧 Andrey fala sobre busca por representatividade

Andrey e Danilo cresceram expostos a imagens que traziam uma única representação de masculinidade e, na grande maioria das vezes, representadas por homens brancos, que “diziam” a eles que o jeito que eram e existiam era diferente e errado. Para criar novas representações, PROVOQUE propõe uma nova produção de imagens, que mostre uma ampla representatividade para as crianças, como Andrey e Danilo, mostrando diferentes formas de existência.

Compartilhando

Em sua tese, depois de realizadas as quatro primeiras etapas de PROVOQUE, o professor João escolheu cumprir o quinto e último passo, “Compartilhando”, expondo as gravuras que ele mesmo recriou, a partir da análise de cada um dos 20 personagens das animações Mulan e Aladdin. As imagens foram coladas nas paredes de diversos banheiros públicos da UEM e das ruas de Barcelona, na Espanha, onde parte da pesquisa foi feita, em um doutorado sanduíche, na Facultad de Bellas Artes/ Universitat de Barcelona.

Posteriormente, o professor reorganizou a estrutura do texto, linguagem, diagramação e até a questão de acessibilidade, para transformar todo esse material em livro, com um acesso mais fácil para a sociedade. Então, no ano passado, foi lançado o livro “PROVOQUE”, pela Editora Metanoia, que traz um recorte do trabalho com uma linguagem menos acadêmica.

Ainda como uma continuação da discussão levantada pela tese de doutorado, sobre problematizar visualidades e questionar estereótipos, João Paulo escreveu e lançou, na segunda-feira (9), o livro infantil “A vida de um Chuveirando”, produzido com verba de Incentivo à Cultura, pela Lei Municipal de Maringá 10988/2019, Prêmio Aniceto Matti, tendo mais de 1500 cópias sendo distribuídas, gratuitamente, para a população da cidade.

Professor e pesquisador da UEM João Paulo Baliscei e o livro PROVOQUE

“O Chuveirando foi um personagem que eu criei em 2009, quando me apaixonei pelo meu marido, com quem eu vivo até hoje. Me pareceu estranho explicar para as pessoas como eu, um homem religioso, me apaixonei por outro homem. Como eu não consegui explicar, eu criei esse personagem e uma história”, explica o professor.

Para que novas histórias como a de Chuveirando sejam contadas, e novas representações sejam criadas, é preciso que profissionais responsáveis pela criação de imagens, profissionais que utilizam imagens em qualquer atividade de ensino, alunos, pesquisadores e todas as pessoas comecem a problematizar visualidades e questionar estereótipos. Assim, novas representações de gênero surgirão e as crianças passarão a entender que existem diversas maneiras de ser, dentre elas, uma em que meninos possam pintar as unhas e as meninas possam escolher não serem mães quando adultas.

Definição de Estudos Culturais: As relações entre imagens e sujeitos são menos caracterizadas pela suposta “transmissão” de conteúdos por parte das imagens, e mais pela criação de significados por parte dos sujeitos. Logo, nessa linha de raciocínio, ao invés de “lerem” significados previamente estabelecidos nas imagens, os sujeitos desempenhariam papéis de Construtores ou Intérpretes Visuais.

O conteúdo desta página foi produzido por

Texto: Rafael Donadio
Edição de áudio: Valéria Quaglio da Silva
Roteiro de vídeo: Karoline Yasmin
Edição de vídeo: Karoline Yasmin
Supervisão: Ana Paula Machado Velho
Imagens: Arquivo Pessoal e material de pesquisa
Arte: John Zegobia

A pesquisa que mencionamos contribui para os seguintes ODS:


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